Arquivo do mês: agosto 2009

Entre tantos sucessos desta semana, que valeu por quatro, um houve que principalmente me encheu o espírito. Foi a proclamação do ex-governador Hercílio, ao deixar o poder de algumas horas…

Rua do Ouvidor, 1890

Rua do Ouvidor, 1890

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 13 de agosto de 1893.

Entre tantos sucessos desta semana, que valeu por quatro, um houve que principalmente me encheu o espírito. Foi a proclamação do ex-governador Hercílio, ao deixar o poder de algumas horas.

Talvez o leitor nem saiba dela, tão certo é que os vencidos não merecem compaixão. Eu também não a li; não sei se é longa ou breve, nem em que língua é escrita, dado que os revolucionários fossem alemães, como disseram telegramas, — ou teuto-brasileiros, fórmula achada no Rio Grande do Sul para exprimir a dupla origem de alguns concidadãos nossos. Também ignoro se a proclamação ataca o poder federal, como fez um telegrama do próprio ex-governador. Propriamente, a minha questão não é política. A parte política só me ocupa, quando do ato ou do fato sai alguma psicologia interessante.

Ora, a proclamação do Sr. Hercílio, quando deixou o poder, é um documento de alta significação psicológica. Não a conheço, mas vi notícia telegráfica de que saiu impressa em cetim azul com letras de ouro.

À primeira vista parece nada; os amigos e correligionários é que naturalmente tiveram a idéia de pôr em relevo as palavras do chefe, dando-lhes esse veículo de ouro e cetim. Penetrando, porém, com olhos mais sagazes, compreende-se que essa preocupação da forma é a manifestação inconsciente da garridice da nossa alma. Podemos matar ou ferir. Naquele mesmo tumulto, pereceu um médico, ainda não se sabe com bala de quem, porque ambos os lados repelem a autoria do tiro. Mas, cessadas as hostilidades, voltamos à graça e ao adorno. Papel preto, letras amarelas, fazendo lembrar o aspecto dos caixões mortuários, tal devia ser a proclamação de um vencido. Poeta que a inventasse, recorreria a lâminas de aço com letras de bronze. Tudo filho da idéia que conjuga o desbarato e a melancolia — ou, quando muito, a ameaça.

A generalidade dos homens adotou, em vez disso, o simples papel branco e letra preta. Os espíritos garridos, porém, não cedem do enfeite, e, quando tudo parece que devia estar lívido, está cor de ouro.

Concluamos que há uma força íntima que nos impele a fazer de uma calamidade uma gravata, e de um tiro mortal um ósculo comprido. Não; nós não levamos a paixão política ao ponto a que a levou agora a gente do Rosário, província argentina, onde a polícia era defendida das sotéias das casas pelos bombeiros e pelos presos.

Quando a opinião dos homens chega a defender a própria polícia que os encarcerou, é que eles são chegados àquele grau em que uma nação dá de si Brutus. Esmagar a polícia é o impulso natural de todo cidadão capturado; mas trepar nas sotéias para defendê-la a tiro, é coisa que sai do homem para entrar no romano.

Também isso me veio por telegrama; eu quase não leio outra coisa, tanta é a ocupação do meu tempo. Alguma notícia que vi, como o arrombamento de um cartório e o desaparecimento de uns autos, é por ouvi-la contar. Essa mesma do cartório não a pude ouvir bem. Chovia e ventava muito, o bond tinha as cortinas alagadas; as cortinas, longe de serem de oleado, eram de pano de algodão, que se encharcam mais, posto custem menos dinheiro. Não devia zangar-me com isso, porque o bond era de Botafogo, companhia de que sou acionista, e quanto menos custarem as cortinas, mais valerão os papéis. Entretanto, zanguei-me, porque o pano molhado, tocado pelo vento, batia-me na cara, nas pernas e no chapéu, sem deixar-me ouvir o lance dos autos e do cartório. Só depois de apeado e recolhido é que recobrei a alegria. Com efeito tinha estragado o chapéu; mas chapéu não rende, a ação rende.

Lembro-me que, quando entrei na rua Gonçalves Dias, ia chuviscando e ainda fui ao fim da rua do Senador Dantas para achar lugar em bond de Botafogo.

Mandei ao diabo a idéia de retirar o ponto dos bonds, da rua Gonçalves Dias; mas outra sensação expeliu a primeira. Quando descansei da viagem, em casa, lembrei-me que esse dia era justamente o aniversário natalício do nosso poeta nacional. Corri a enfeitar de flores o seu retrato, e recitei algumas estrofes, como na missa se faz com pedaço do Evangelho. Esta semana é, aliás, uma semana de poetas. Nela nasceram também o Magalhães, poeta e diplomata, e S. Carlos, poeta e frade. Vi Gonçalves Dias duas vezes. Da primeira adivinhei quem era, não sentindo mais que o passo rápido de um homenzinho pequenino. Era ele, era o autor da Canção do Exílio, que se soletrava desde os dez anos…


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Vamos adiante.

Vamos à rua do Ouvidor; é um passo. Desta rua ao Diário de Notícias é ainda menos. Ora, foi no Diário de Notícias que eu li uma defesa do alargamento da dita rua do Ouvidor, — coisa que eu combateria aqui, se tivesse tempo e espaço. Vós que tendes a cargo o aformoseamento da cidade alargai outras ruas, todas as ruas, mas deixai a do Ouvidor assim mesma — uma viela, como lhe chama o Diário, — um canudo, como lhe chamava Pedro Luiz. Há nela, assim estreitinha, um aspecto e uma sensação de intimidade. É a rua própria do boato. Vá lá correr um boato por avenidas amplas e lavadas de ar. O boato precisa do aconchego, da contigüidade, do ouvido à boca para murmurar depressa e baixinho, e saltar de um lado para outro.

Na rua do Ouvidor, um homem, que está à porta do Laemmert, aperta a mão do outro que fica à porta do Crashley, sem perder o equilíbrio. Pode-se comer um sandwich no Castelões e tomar um cálix de Madeira no Deroché, quase sem sair de casa. O característico desta rua é ser uma espécie de loja única, variada, estreita e comprida.

Depois, é mister contar com a nossa indolência. Se a rua ficar assaz larga para dar passagem a carros, ninguém irá de uma calçada a outra, para ver a senhora que passa, — nem a cor dos seus olhos, nem o bico dos seus sapatos, e onde ficará em tal caso “o culto do belo sexo”, se lhe escassearem os sacerdotes.

Outra prova.

Houve domingo passado o grande prêmio do Derby-Club. Dizem que se apostaram cerca de quatrocentos contos de réis no lugar das corridas. Mais, muito mais, deram as apostas cá em baixo. Uma das vantagens das corridas de cavalos é poder agente apostar nelas sem sair da freguesia.

Faz lembrar os velhos mendigos de Nicolau Tolentino, que, de uma praça de Lis-bons, acompanhavam os exércitos europeus, marchas e contramarchas, ganhavam batalhas, retificavam fronteiras, até que voltavam ao seu ofício, se aparecia alguém:

E tendo dado cidades,

Nos vem pedir uma esmola.

Na Inglaterra, onde o cavalo é uma instituição nacional, quando chega o dia do grande prêmio toda a gente vai às corridas. A própria câmara dos comuns, que não tem folga, seja de gala, seja de tristezas, abala e dá consigo no Derby. Pode ser que, sobre a tarde, como as suas sessões entram pela noite velha, vá aos trabalhos parlamentares; mas não perde a grande festa. Lá, porém, o clima é frio. Que seria aqui esse nobre exercício do cavalo, se, para acompanhar as corridas, fosse preciso ir vê-las? Com certeza, morria. O mesmo acontecerá à rua do Ouvidor, se a fizerdes mais larga.

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Anteontem, dez de agosto, achando-se reunidas algumas pessoas, falou-se casualmente da emissão de trezentos contos de títulos, autorizada pela assembléia do Maranhão…

Cédula de 200 mil réis

Cédula de 200 mil réis

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 12 de agosto de 1894.

Anteontem, dez de agosto, achando-se reunidas algumas pessoas, falou-se casualmente da emissão de trezentos contos de títulos, autorizada pela assembléia do Maranhão. Queriam uns que fosse papel-moeda, outros que não. Dos primeiros alguns davam o ato por legítimo, outros negavam a legitimidade, mas admitiam a conveniência. Travou-se debate. O mais extremado opinou que o direito de emitir era inerente ao homem, qualquer um podia imprimir as suas notas, e tanto melhor se as recebessem. Citou, como argumento, os bilhetes que circulam no interior, e concluiu sacando do bolso uma cédula de duzentos mil réis, que apanhou em Maragogipe, impressa na mesma casa de Nova-York que imprime as nossas notas públicas.

Nesse terreno o debate foi não só brilhante mas fastidioso. As matérias financeiras e econômicas são graves. Geralmente, os espíritos que não conseguem ver claro nem dizer claro dão para a economia política e as finanças, atribuindo assim à ciência de muitos varões ilustres a obscuridade que está neles próprios. Conheci um homem, primor de alegria, que andou carrancudo um ano inteiro, por haver descoberto que papel-moeda era uma coisa e moeda-papel outra; não dizia mais nada, não dava bons dias, mas papel-moeda, nem boas noites, mas moeda-papel. Era lúgubre; um cemitério, ainda com chuva, ainda de noite, era um centro de hilaridade ao pé daquele desgraçado. Melhorou no fim de um ano, mas já não era o mesmo. A alegria, trazia-lhe não sei que ar torcido que mais parecia escárnio…

Do debate travado saiu, entretanto, uma idéia, a idéia de termos aqui a nossa moeda municipal. Contra ela protestavam os que eram pela unidade da emissão; os outros pegaram deles pelos ombros e os puseram na rua, esquecendo que as assembléias não se inventaram para conciliar os homens, mas para legalizar o desacordo deles. Ficamos nós. A idéia foi estudada e desenvolvida. Chegamos a formular um projeto autorizando o prefeito a emitir até dois mil contos de réis. Um, mais escrupuloso, queria que a emissão fosse garantida pelas propriedades municipais; mas esta sub-idéia não foi aceita. Com efeito, a propriedade municipal é incerta e difícil de definir. As árvores das ruas são próprios municipais? No caso afirmativo, como se explica que o meu criado José Rodrigues as tenha comprado ao empreiteiro dos calçamentos do bairro, para me poupar as despesas da lenha? A discussão tornou-se bizantina, resolvemo-nos pela emissão pura e simples, sem garantia, além da confiança do contribuinte e da lealdade do emissor. Concluído o projeto, acrescentou-se que um de nós iria dá-lo de presente ao conselho municipal.

Mas aqui surgiu uma dúvida: Haverá conselho municipal? A legislação era pela afirmativa. A imprensa diária, superficialmente lida, não o era menos. Vários fenômenos, porém, faziam suspeitar que o conselho municipal não existia. A linguagem atribuída ao seu presidente, na sessão de quarta-feira, era um desses fenômenos. Disse ele (pelo que referem os jornais) que o conselho, convocado desde 3 do mês passado, raras vezes se reunira; assim, vendo que os membros não compareciam, ia oficiar-lhes pessoalmente chamando-os aos trabalho. Há aí contradição nos termos, porquanto, se o conselho foi convocado desde mais de um mês, e não se reunia, é que não tinha membros, e se não tinha membros não era conselho. Um dos presentes defendeu, entretanto, a probabilidade da existência.

— Há razões para crer que o conselho existe, disse ele. A primeira é que a vinte e oito do mês passado houve sessão, proferiram-se alguns discursos, resolvendo-se afinal que era preciso ler e meditar as matérias sujeitas a deliberação. Deu-se até um incidente que explica até certo ponto a falta de sessão nos outros dias. Um dos intendentes, referindo-se a um velho projeto, disse: “Estando a comissão em dúvida sobre alguns pontos do projeto, desejava que o seu autor aparecesse neste casa, a fim de interrogá-lo; S. Ex. porém, não tem aparecido…” Daqui se pode concluir que não há freqüência, que um intendente aparece, às vezes, que é recebido com demonstrações de saudade: “Ora seja muito bem aparecido!” Mas não parece clara a conclusão contra a existência do conselho. A segunda razão que me faz vacilar na negativa da existência é que, intimados pessoalmente no dia 7, o conselho fez sessão logo a 9. Verdade é que já hoje, 10, não houve sessão. Enfim, tenho um indício veemente de que o conselho existe, é a resignação do cargo por dois membros. Está nos jornais.

A maioria não aceitou este modo de ver. A publicação dos atos do conselho não era prova da existência deste, podiam ser variedades literárias. A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição da sua vitalidade. Podia ser também um processo engenhoso de mostrar a necessidade de termos um conselho municipal. Quem se não lembra da famosa Batalha de Dorking, opúsculo publicado há anos, descrevendo uma batalha que não houve, mas pode haver, se a Inglaterra não aumentar as forças navais? Já se escreveu uma História do que não aconteceu. Demais, é necessidade da imprensa agradar aos leitores, dando-lhes matéria interessante e principalmente nova. Ora, se o conselho municipal não existe, nada mais novo que supô-lo trabalhando.

Essa opinião da maioria irritou os poucos que admitiam a probabilidade da existência, dando em resultado afirmarem agora o que antes era para eles simples presunção. Um da minoria ergueu-se e demonstrou a existência do conselho pela consideração de que o município é a base da sociedade e dizendo cousas latinas acerca do município romano. Naturalmente, a maioria indignou-se. Um, para provar que o preopinante errava, chamou-lhe asno, ao que retorquiu aquele que as suas orelhas eram felizmente curtas. Essa alusão às orelhas compridas do outro fez voar um tinteiro e ia começar a dança das bengalas, quando me ocorreu uma idéia excelente.

— Meus amigos, disse eu, peço-vos um minuto de atenção. Estamos aqui a discutir a existência do conselho municipal, a propósito da emissão de títulos maranhenses, que talvez não exista, tal qual o conselho. Mas, dado que a emissão de títulos seja real, é certo que há de durar pouco, tanto mais que é por antecipação de receita, enquanto que aqui está outra emissão do Maranhão, muito mais duvidosa que essa. Este dia 10 de agosto é o aniversário do nascimento de Gonçalves Dias. Há setenta e um anos que o Maranhão no-lo deu, há trinta que o mar no-lo levou, e os seus versos de grande poeta perduram, tão viçosos, tão coloridos, tão vibrantes como nasceram. Viva a poesia, meus amigos! Viva a sacrossanta literatura! como dizia Flaubert. Não sei se existem intendentes, mas os Timbiras existem.

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Que pouco se leia nesta terra é o que muita gente afirma, há longos anos…

joaquimnabuco

Joaquim Nabuco

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 11 de agosto de 1895.

QUE POUCO se leia nesta terra é o que muita gente afirma, há longos anos; é o que acaba de dizer um bibliômano na Revista Brasileira. Este, porém, confirmando a observação, dá como uma das causas do desamor à leitura o ruim aspecto dos livros, a forma desigual das edições, o mau gosto, em suma. Creio que assim seja, contanto que essa causa entre com outras de igual força. Uma destas é a falta de estantes. As nossas grandes marcenarias estão cheias de móveis ricos, vários de gosto; não há só cadeiras, mesas, camas, mas toda a sorte de trastes de adorno fielmente copiados dos modelos franceses, alguns com o nome original, o bijou de salon, por exemplo, outros em língua híbrida, como o porte-bibelots Entra-se nos grandes depósitos, fica-se deslumbrado pela perfeição da obra, pela riqueza da matéria, pela beleza da forma. Também se acham lá estantes, é verdade, mas são estantes de músicas para piano e canto, bem acabadas, vário tamanho e muita maneira.

Ora, ninguém pode comprar o que não há. Mormente os noivos, nem tudo acode. A prova é que, se querem comprar cristais, metais louça, vão a outras casas, assim também roupa branca, tapeçaria etc.; mas não é nelas que acharão estantes. Nem é natural que um mancebo, prestes a contrair matrimônio, se lembre de ir a lojas de ferro ou de madeira; quando se lembrasse, refletiria certamente que a mobília perderia a unidade. Só as grandes fábricas poderiam dar boas estantes, com ornamentações, e até sem elas.

A Revista Brasileira é um exemplo de que há livros com excelente aspecto. Creio que se vende, se não se vendesse, não seria por falta de matéria e valiosa. Mudemos de caminho, que este cheira a anúncio. Falemos antes da impressão que este último número me trouxe. Refiro-me às primeiras páginas de um longo livro, uma biografia de Nabuco, escrita por Nabuco, filho de Nabuco. É o capítulo da infância do finado estadista a e jurisconsulto . As vidas dos homens que serviram noutro tempo, e são os seus melhores representantes, hão de interessar sempre às gerações que vierem vindo. O interesse, porém, será maior, quando o autor juntar o talento e a piedade filial, como na presente caso. Dizem que na sepultura de Chatham se pôs este letreiro: “O pai do Sr. Pitt”. A revolução de 1889 tirou, talvez, ao filho de Nabuco uma consagração análoga. Que ele nos dê com a pena o que nos daria com a palavra e a ação parlamentares, e outro fosse o regímen, ou se ele adotasse a constituição republicana. Há muitos modos de servir a terra de seus pais.

A impressão de que fale, vem de anos longos. Desde muito morrera Paraná e já se aproximava a queda dos conservadores, por intermédio de Olinda, precursor da ascensão de Zacarias. Ainda agora vejo Nabuco, já senador, no fim da bancada da direita, ao pé da janela, no lugar correspondente ao em que ficava, do outro lado, o Marquês de Itanhaém, um molho de ossos e peles, trôpego, sem dentes nem valor político. Zacarias, quando entrou para o Senado foi sentar-se na bancada inferior à da Nabuco. Eis aqui Eusébio de Queirós, chefe dos conservadores, respeitado pela capacidade política, admirado pelos dotes oratórios, invejado talvez pelos seus célebres amores. Uma grande beleza do tempo andava desde muito ligada ao seu nome. Perdoe-me esta menção. Era uma senhora alta, outoniça… São migalhas da história, mas as migalhas devem ser recolhidas. Ainda agora leio que, entre as relíquias de Nélson, coligidas em Londres, figuram alguns mimos da formosa Hamilton. Nem por se ganharem batalhas navais ou políticas se deixa de ter coração. Jequitinhonha acaba de chegar da Europa, com os seus bigodes pouco senatoriais. Lá estavam Rio Branco, simples Paranhos, no centro esquerdo, bancada inferior, abaixo de um senador do Rio Grande do Sul, como se chamava?—Ribeiro, um que tinha ao pé da cadeira. no chão atapetado o dicionário de Morais consultava a miúdo, para verificar se tais palavras de um orador eram ou não legítimas; era um varão instruído e lhano. Quem especificar mais, São Vicente, Caxias, Abrantes, Maranguape, Cotegipe, Uruguai, Itaboraí, Otoni, e tantos, tantos, uns no fim da vida, outros para lá do meio dela, e todo presididos pelo Abaeté, com os seus compridos cabelos brancos.

Eis aí o que fizeram brotar as primeiras páginas de Um Estadista do Império. Ouço ainda a voz eloqüente do velho Nabuco, do mesmo modo que ele devia trazer na lembrança as de Vasconcelos, Ledo Paula Sousa, Lino Coutinho, que ia ouvir, em rapaz, na galeria da Câmara, segundo nos conta o filho. Que este faça reviver aqueles e outros tempos, contribuindo para a história do século XIX, quando algum sábio de 1950 vier contar as nossas evoluções políticas.

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Como não se há de só escrever história política, aqui está Coelho Neto, romancista, que podemos chamar historiador, no sentido de contar a vida das almas e dos costumes dos nossos primeiros romancistas, e, geralmente falando, dos nossos primeiros escritores mas é como autor de obras de ficção que ora vos trago aqui, com o seu recente livro Miragem. Coelho Neto tem o dom da invenção, da composição, da descrição e da vida, que coroa tudo. Não vos poderia narrar a última obra, sem lhe cercear o interesse. Parte dela está na vista imediata das coisas, cenas e cenários. Não há transportar para aqui os aspectos rústicos, as vistas do céu e do mar, as noites dos soldados a vida da roça, os destroços de Humaitá, a marcha das tropas, em 15 de novembro, nem ainda as últimas cenas do livro, tristes e verdadeiras. O derradeiro encontro de Tadeu e da mãe é patético. Os personagens vivem, interessam e comovem. A própria terra vive. A miragem, que dá o título ao livro, é a vista ilusória de Tadeu, relativamente ao futuro trabalhado por ele, e o desmentido que o tempo lhe traz, como ao que anda no deserto.

Não posso dizer mais; chegaria a dizer tudo. A arte dos caracteres mereceria ser aqui indicada com algumas citações: os episódios, como os amores de Tadeu em Corumbá, a impiedade de Luísa acerca dos desregramentos da mãe, a bondade do ferreiro Nasário, e outros que mostram em Coelho Neto um observador de pulso.

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Toda esta semana foi empregada em comentar a eleição de domingo. É sabido que o eleitorado ficou em casa.

É sabido que o eleitora ficou em casa...

É sabido que o eleitora ficou em casa...

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 7 de agosto de 1892, há exatos 117 anos.

Toda esta semana foi empregada em comentar a eleição de domingo. É sabido que o eleitorado ficou em casa. Uma pequena minoria é que se deu ao trabalho de enfiar as calças, pegar do título e da cédula e caminhar para as urnas. Muitas seções não viram mesários, nem eleitores, outras, esperando cem, duzentos, trezentos eleitores, contentaram-se com sete, dez, até quinze.

Uma delas, uma escola pública, fez melhor, tirou a urna que a autoridade lhe mandara, e pôs este letreiro na porta: A urna da 8ª seção está na padaria dos Srs. Alves Lopes & Teixeira, à rua de S. Salvador n…”. Alguns eleitores ainda foram à padaria; acharam a urna, mas não viram mesários. Melhor que isso sucedeu na eleição anterior, em que a urna da mesma escola nem chegou a ser transferida à padaria, foi simplesmente posta na rua, com o papel, tinta e penas. Como pequeno sintoma de anarquia, é valioso.

Variam os comentários. Uns querem ver nisto indiferença pública, outros descrença, outros abstenção. No que todos estão de acordo, é que é um mal, e grande mal. Não digo que não; mas há um abismo entre mim e os comentadores; é que eles dizem o mal, sem acrescentar o remédio, e eu trago um remédio, que há de curar o doente. Tudo está em acertar com a causa da moléstia.

Comecemos por excluir a abstenção. Lá que houvesse algumas abstenções, creio; dezenas e até centenas, é possível; mas não concedo mais. Não creio em vinte e oito mil abstenções solitárias, por inspiração própria; e se os eleitores se concertassem para alguma coisa, seria naturalmente para votar em alguém, — no leitor ou em mim.

Excluamos também a descrença. A descrença é explicação fácil, e nem sempre sincera. Conheço um homem que despendeu outrora vinte anos da existência em falsificar atas, trocar cédulas, quebrar urnas, e que me dizia ontem, quase com lágrimas, que o povo já não crê em eleições. “Ele sabe — acrescentou fazendo um gesto conspícuo — que o seu voto não será contado”. Pessoa que estava conosco, muito lida em ciências e meias ciências, vendo-me um pouco apatetado com essa contradição do homem, restabeleceu-me, dizendo que não havia ali verdadeira contradição, mas um simples caso de “alteração da personalidade”.

Resta-nos a indiferença; mas nem isto mesmo admito. Indiferença diz pouco em relação à causa real, que é a inércia. Inércia, eis a causa! Estudai o eleitor; em vez de andardes a trocar as pernas entre três e seis horas da tarde, estudai o eleitor. Achá-lo-eis bom, honesto, desejoso da felicidade nacional. Ele enche os teatros, vai às paradas, às procissões, aos bailes, aonde quer que há pitoresco e verdadeiro gozo pessoal. Façam-me o favor de dizer que pitoresco e que espécie de gozo pessoal há em uma eleição? Sair de casa sem almoço (em domingo, note-se!), sem leitura de jornais, sem sofá ou rede, sem chambre, sem um ou dois pequerruchos, para ir votar em alguém que o represente no Congresso, não é o que vulgarmente se chama caceteação?

Que tem o eleitor com isso? Pois não há governo? O cidadão, além dos impostos, há de ser perseguido com eleição?

Ouço daqui (e a voz é do leitor) que eleições se fizeram em que o eleitorado, todo, ou quase todo, saía à rua, com ânimo, com ardor, com prazer, e o vencedor celebrava a vitória à força de foguete e música; que os partidos… Ah! os partidos! Sim, os partidos podem e têm abalado os nossos eleitores; mas partidos são coisas palpáveis, agitam-se, escrevem, distribuem circulares e opiniões; os chefes locais respondem aos centrais, até que no dia do voto todas as inércias estão vencidas; cada um vai movido por uma razão suficiente. Mas que fazer, se não há partidos?

Que fazer? Aqui entra a minha medicação soberana. Há na tragédia Nova Castro umas palavras que podem servir de marca de fábrica deste produto. Não quiseste ir, vim eu. Creio que é D. Afonso que as diz a D. Pedro; mas não insisto, porque posso estar em erro, e não gosto de questões pessoais. Ora, tendo lido lia alguns dias (e já vi a mesma coisa em situações análogas) declarações de eleitores do Estado do Rio de Janeiro, afirmando que votam em tal candidato, creio haver achado o remédio na sistematização desses acordos prévios, que ficarão definitivos. Não quiseste ir, vim eu. O eleitor não vai à urna, a urna vai ao eleitor.


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Uma lei curta e simples marcaria o prazo de sete dias para cada eleição. No dia 24, por exemplo, começariam as listas a ser levadas às casas dos eleitores. Eles estendidos na chaise-longue, liam e assinavam. Algum mais esquecido poderia confundir as coisas.

— Subscrição? Não assino.

— Não, senhor…

— O gás? Está pago.

— Não, senhor, é a lista dos votos para uma vaga na Câmara dos Deputados; eu trago a lista do candidato Ramos…

— Ah! já sei… Mas eu assinei ainda há pouco a do candidato Ávila.

A alma do agente era, por dois minutos, teatro de um formidável conflito, cuja vitória tinha de caber ao Mal.

— Pois, sim, senhor; mas V. S. pode assinar esta, e nós provaremos em tempo que a outra lista foi assinada amanhã, por distração de Vossa Senhoria.

O eleitor, sem sair da inércia, apontava a porta ao agente. Mas tais casos seriam raros; em geral, todos procederiam bem.

No dia 31 recolhiam-se as listas, publicavam-se, a Câmara dos Deputados somava, aprovava e empossava. Tal é o remédio; se acharem melhor, digam; mas eu creio que não acham.

Há sempre uma sensação deliciosa quando a gente acode a um mal público; mas não é menor, ou é pouco menor a que se obtém do obséquio feito a um particular, salvo empréstimos. Assim, ao lado do prazer que me trouxe a achada do remédio político, sinto o gozo do serviço que vou prestar ao Sr. deputado Alcindo Guanabara. Este distinto representante, em discurso de anteontem, declarou que temia falar com liberdade, à vista do governo armado contra o Sr. Dr. Miguel Vieira Ferreira, pastor evangélico e acusado de mandante no desacato feito à imagem de Jesus Cristo no júri. Perdoe-me o digno deputado; vou restituir-lhe a quietação ao espírito.

Depois que o Sr. deputado Alcindo Guanabara falou, foi publicada a sentença de pronúncia. Que consta dela? Que havia dois denunciados, o Dr. Miguel Vieira Ferreira, pastor da igreja evangélica, dado como mandante do desacato, e Domingos Heleodoro, denunciado mandatário. A sentença estabelece claramente dois pontos capitais: 1°, que Domingos Heleodoro, embora ninguém visse quebrar a imagem, ao perguntarem-lhe o que fora aquilo, respondera: É a lei que se cumpre; 2°, que o pastor Miguel V. Ferreira, na véspera do desacato, afirmando a algumas pessoas que a imagem havia de sair, acrescentou que, se não acabasse por bem, acabaria por mal. Tudo visto e considerado, a sentença proferiu a criminalidade de Domingos Heleodoro, e não admitiu a do Dr. Miguel V. Ferreira. Veja o meu distinto patrício a diferença, e faça isto que lhe vou dizer.

Quando houver de discutir matérias espirituais, evite sempre dizer: É a lei que se cumpre, — frase claríssima, a respeito de um certo nariz postiço, vago e obscuro.

Ao contrário, diga: Há de sair por bem ou por mal, — expressão obscura e frouxa, apesar do aspecto ameaçador que inadvertidamente se lhe pode atribuir. Fale S. Ex. como pastor, e não como ovelha.

A verdade é que os desacatos podem reproduzir-se, sem que Deus saia da alma do homem. Ainda ultimamente no senado, tomados de pânico, muitos senadores não tiveram outra invocação. O Sr. senador Ubaldino do Amaral analisara o projeto de um grande banco emissor, em que havia este artigo: “Fica autorizado por antecipação a fazer uma emissão de trezentos mil contos de réis (300.000:000$000.)”

— Santo Deus! exclamaram os senadores aterrados.

Crede-me. Deus é a natural exclamação diante de um grande perigo. Um abismo que se abre aos pés do homem, um terremoto, um flagelo, um ciclone, qualquer efeito terrível de forças naturais ou humanas, arranca do imo do peito este grito de pavor e de desespero:

— Santo Deus!

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Os dois maiores acontecimentos dos últimos trinta anos nesta cidade

gazetadenoticias

O Jornal Gazeta de Notícias foi fundado em 2 de agosto de 1875

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 6 de agosto de 1893, há exatos 116 anos.

A Gazeta completou os seus dezoito anos. Ao sair da festa de família com que ela celebrou o seu aniversário, fui pensando no que me disse um conviva, excelente membro da casa, a saber, que os dois maiores acontecimentos dos últimos trinta anos nesta cidade foram a Gazeta e o bond.

Tens razão, Capistrano. Um e outro fizeram igual revolução. Há um velho livro do Padre Manuel Bernardes, cujo título, Pão partido em pequeninos, bem se pode aplicar à ação dos dois poderosos instrumentos de transformação. Antigamente as folhas eram só assinadas; poucos números avulsos se vendiam e, ainda assim, era preciso ir comprá-los ao balcão, e caro. Quem não podia assinar o Jornal do Commercio, mandava pedi-lo emprestado, como se faz ainda hoje com os livros, — com esta diferença que o Jornal era restituído — e com esta semelhança: que voltava mais ou menos enxovalhado.

As outras folhas — não tinham o domínio da notícia e do anúncio da publicação solicitada, da parte comercial e oficial; demais, serviam a partidos políticos. A mor parte delas (para empregar uma comparação recente) vivia o que vivem as rosas de Malherbe.

Quando a Gazeta apareceu, o bond começava. A moça que vem hoje à Rua do Ouvidor, sempre que lhe parece, à hora que quer, com a mamãe, com a prima, com a amiga, porque tem o bond à porta e à mão, não sabe o que era morar fora da cidade ou longe do centro. Tínhamos diligências e ônibus; mas eram poucos, com poucos lugares, creio que oito ou dez, e poucas viagens. Um dos lugares era eliminado para o público. Ia nele o recebedor, um homem encarregado de receber o preço das passagens e abrir a portinhola para dar entrada ou saída aos passageiros. Um cordel, vindo pelo tejadilho, punha em comunicação o cocheiro e o recebedor; este puxava, aquele parava ou andava. Mais tarde, o cocheiro acumulou os dois ofícios. Os veículos eram fechados, como os primeiros bonds, antes que toda a gente preferisse os dos fumantes e inteiramente os desterrasse.

— Já passou a diligência? Lá vem o ônibus! Tais eram os dizeres de outro tempo. Hoje não há nada disso. Se algum homem, morador em rua que atravesse a da linha, grita por um bond que vai passando ao longe, não é porque os veículos sejam raros, como outrora, mas porque o homem não quer perder este bond, porque o bond pára, e porque os passageiros esperam dois ou três minutos, quietos. Esperar, se me não falha a memória, é a última palavra do Conde de Monte-Cristo. Todos somos Monte-Cristos, posto que o livro seja velho. Falemos à gente moça, à gente de vinte e cinco anos, que era apenas desmamada, quando se lançaram os primeiros trilhos, entre a Rua Gonçalves Dias e o largo do Machado. O bond foi posto em ação, e a Gazeta veio no encalço. Tudo mudou. Os meninos, com a Gazeta debaixo do braço e pregão na boca, espalhavam-se por essas ruas, berrando a notícia, o anúncio, a pilhéria, a crítica, a vida, em suma, tudo por dois vinténs escassos. A folha era pequena; a mocidade do texto é que era infinita. A gente grave, que, quando não é excessivamente grave, dá apreço à nota alegre, gostou daquele modo de dizer as coisas sem retesar os colarinhos. A leitura impôs-se, a folha cresceu, barbou, fez-se homem, pôs casa; toda a imprensa mudou de jeito e de aspecto.

Não me puxem as orelhas pelo que disse acerca das folhas políticas. Se não eram vivedouras outrora, se hoje o não podem ser sem outro algum condimento, a culpa não é minha. E digo mal, políticas; partidárias é que deve ser. De política também tratam as outras. A questão é um pouco mais longa que esta página, e mais profunda que esta crônica; mas sempre lhes quero contar uma história.

Um telegrama datado de Buenos-Aires, 3, deu notícia de que a Nación, órgão do General Mitre, aconselha a união de todos os cidadãos, no meio da desordem, que vai por algumas províncias argentinas. Ora, ouçam a minha história que é de 1868. Nesse ano, Mitre, que assumira o poder em 1860, depois de uma revolução, concluiu os dois prazos constitucionais de presidente; fizera-se a eleição do presidente e saíra eleito Sarmiento, que então era representante diplomático da república nos Estados-Unidos. Vi este Sarmiento, quando passou por aqui para ir tomar conta do governo argentino. Boas carnes, olhos grandes, cara rapada. Tomava chá no Club Fluminense, no momento em que eu ia fazer o mesmo, depois de uma partida de xadrez com o professor Palhares. Pobre Palhares! Pobre Club Fluminense! Era um chá sossegado, entre nove e dez horas, um baile por mês, moças bonitas, uma principalmente… Une surtout, un ange… O resto está em Victor Hugo. Un ange, une jeune espagnole. A diferença é que não era espanhola. Sarmiento vinha, creio eu, do paço de S. Cristóvão ou do Instituto Histórico; estava de casaca, bebia o chá, trincava torradas, com tal modéstia que vinguem diria que ia governar uma nação.

Quando Sarmiento chegou a Buenos-Aires e tomou conta do governo, quiseram fazer a Mitre, que o entregava, uma grande manifestação política. A idéia que vingou foi criar um jornal e dar-lho. Esse jornal é esta mesma Nación que é ainda órgão de Mitre, e que ora aconselha (um quarto de século depois) a união de todos os cidadãos. É um jornal enorme de não sei quantas páginas. Em trocos miúdos, os jornais partidários precisam de partido, um partido faz- se com homens que votem, que paguem, que leiam.

Há ler sem pagar; não é a isso que me refiro. Há também pagar sem ler; falo de outra coisa. Digo ler e pagar, digo votar, digo discutir, escolher, fazer opinião. Sem ela, sem uma boa opinião ativa, pode haver algumas veleidades, mas não há vontade. E a vontade é que governa o mundo.

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