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Todas as coisas têm a sua filosofia…

O bonde

Um bonde na avenida Marechal Floriano, no Rio de Janeiro

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 23 de outubro de 1892, há exatos 116 anos.

Todas as coisas têm a sua filosofia. Se os dois anciãos que o bonde elétrico atirou para a eternidade esta semana, houvessem já feito por si mesmos o que lhes fez o bonde, não teriam entestado com o progresso que os eliminou. É duro dizer; duro e ingênuo, um pouco à La Palisse; mas é verdade. Quando um grande poeta deste século perdeu a filha, confessou, em versos doloridos, que a criação era uma roda que não podia andar sem esmagar alguém. Por que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobres veículos?

Há terras, onde as companhias indenizam as vítimas dos desastres (ferimentos ou mortes) com avultadas quantias, tudo ordenado por lei. É justo; mas essas terras não têm, e deviam ter, outra lei que obrigasse os feridos e as famílias dos mortos a indenizarem as companhias pela perturbação que os desastres trazem ao horário do serviço. Seria um equilíbrio de direitos e de responsabilidades. Felizmente, como não temos a primeira lei, não precisamos da segunda, e vamos morrendo com a única despesa do enterro e o único lucro das orações.

Falo sem interesse. Dado que venhamos a ter as duas leis, jamais a minha viúva indenizará ou será indenizada por nenhuma companhia. Um precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que não passava pela frente de um bonde, sem calcular a hipótese de cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar ao outro lado. Era um bom conselho, como o Doutor Sovina era uma boa farsa, antes das farsas do Pena. Eu, o Pena dos cautelosos, levo o cálculo adiante: calculo ainda o tempo de escovar-me no alfaiate próximo. Próximo pode ser longe, mas muito mais longe é a eternidade.

Em todo caso, não vamos concluir contra a eletricidade. Logicamente, teríamos de condenar todas as máquinas, e, visto que há naufrágios, queimar todos os navios. Não, senhor. A necrologia dos bondes tirados a burros é assaz comprida e lúgubre para mostrar que o governo de tração não tem nada com os desastres. Os jornais de quinta-feira disseram que o carro ia apressado, e um deles explicou a pressa, dizendo que tinha de chegar ao ponto à hora certa, com prazo curto. Bem; poder-se-iam combinar as coisas, espaçando os prazos e aparelhando carros novos, elétricos ou muares, para acudir à necessidade pública. Digamos mais cem, mais duzentos carros. Nem só de pão vive o acionista, mas também da alegria e da integridade dos seus semelhantes.

Convenho que, durante uns quatro meses, os bondes elétricos andem muito mais aceleradamente que os outros, para fugir ao riso dos vadios e à toleima dos ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade é uma versão do processo culinário à la minute, e podem vir a enlamear o veículo com alcunhas feias. Lembra-me (era bem criança) que, nos primeiros tempos do gás no Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gás virou lamparina. E o dito ficou e impôs-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, às belezas murchas, a todas as coisas decaídas.

Ah! se eu for a contar memórias da infância, deixo a semana no meio, remonto os tempos e faço um volume. Paro na primeira estação, 1864, famoso ano da suspensão de pagamentos (ministério Furtado); respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das ações atacou a esta pobre cidade, que só arribou à força do quinino do desengano. Remonto ainda e vou a…

Aonde? Posso ir até antes do meu nascimento, até Law. Grande Law! Também tu tiveste um dia de celebridade; depois, viraste embromador e caíste na casinha da história, o lugar dos lava-pratos. E assim irei de século a século, até o paraíso terrestre, forma rudimentária do encilhamento, onde se vendeu a primeira ação do mundo. Eva comprou-a à serpente, com ágio, e vendeu-a a Adão, também com ágio, até que ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do paraíso terrestre, ao Fiat lux, que, bem estudado ao gás do entendimento humano, foi o princípio da falência universal.

Não; cuidemos só da semana. A simples ameaça de contar as minhas memórias diminuiu-me o papel em tal maneira, que é preciso agora apertar as letras e as linhas.

Semana quer dizer finanças. Finanças implicam financeiros. Financeiros não vão sem projetos, e eu não sei formular projetos. Tenho idéias boas, e até bonitas, algumas grandiosas, outras complicadas, muito 2%, muito lastro, muito resgate, toda a técnica da ciência; mas falta-me o talento de compor, de dividir as idéias por artigos, de subdividir os artigos em parágrafos, e estes em letras a b c; sai-me tudo confuso e atrapalhado. Mas por que não farei um projeto financeiro ou bancário, lançando-lhe no fim as palavras da velha praxe: salva a redação? Poderia baralhar tudo, é certo; mas não se joga sem baralhar as cartas; de outro modo é embaraçar os parceiros.

Adeus. O melhor é ficar calado. Sei que a semana não foi só de finanças, mas também de outras coisas, como a crise de transportes, a carne, discursos extraordinários ou explicativos, um projeto de estrada de ferro que nos põe às portas de Lisboa, e a mulher de César, que reapareceu no seio do parlamento. Vi entrar esta célebre senhora por aquela casa, e, depois de alguns minutos, via-se sair. Corri à porta e detive-a: — “Ilustre Pompéia, que vieste fazer a esta casa?” — “Obedecer ainda uma vez à citação da minha pessoa. Que queres tu? meu marido lembrou-se de fazer uma bonita frase, e entregou-me por todos os séculos a amigos, conhecidos e desconhecidos.”

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Dai-me boas semanas e eu vos darei bons folhetins…

o escritor de folhetins
“Dai-me boas semanas e vos darei bons folhetins…”

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente no Diário do Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, em 10 de outubro de 1864, há exatos 144 anos.

Dai-me boas semanas e eu vos darei bons folhetins.

Mas que se pode fazer no fim de sete dias chochos, passados a ver chover, sem acontecimento de natureza alguma, ao menos destes que tenham para o folhetim direito de cidade?

Gastaram-se os primeiros dias da semana a esperar o paquete, — e o paquete, como para punir tão legítima curiosidade, nada trouxe que estivesse na medida do desejo e da ansiedade. Veio apenas a notícia de um casamento real no norte da Europa, que muita gente olha como um prenúncio da formação do reino escandinavo, mas que eu não sei se dará em resultado exatamente o contrário disso, isto é, a supressão de uma monarquia constitucional em favor de uma monarquia autocrática.

Aí vou eu entrando pelo terreno da política torva e sanhuda. Ponto final ao acidente.

Mas — como dizia eu — que se pode fazer depois de uma semana tão vazia como a cabeça do rival de André Roswein?

Diz Alphonse Karr que depois de encerradas as câmaras e posta a política em férias, os jornais franceses começam a descobrir as virtudes e os milagres; aparecem os atos de coragem e abnegação, e as crianças de duas cabeças e quatro pés. A observação é verdadeira, talvez, mas para lá; o Rio de Janeiro em falta de política, nem mesmo se socorre da virtude e dos fenômenos da natureza. Tudo volta a um silêncio desolador; raream os acontecimentos, acalma-se a curiosidade pública.

Assim, foi com profundo desgosto que eu fiz hoje subir à minha varanda a musa gentil e faceira do folhetim.

— Casta filha do céu, que vês tu na planície? perguntei-lhe como no poema de Ossian.

A infeliz desceu com ar desconsolado e disse-me que nada vira, nem a sombra de um acontecimento, nem o reflexo de uma virtude.

Perdão, viu uma virtude.

Não sei em que lugarejo da Bahia reuniu-se o júri no prazo marcado e teve de dissolver-se logo, porque o promotor de justiça não apresentou um só processo.

Ó Éden baiano! dar-se-á caso que no intervalo que mediou entre a última sessão do júri e esta, nem um só crime fosse cometido dentro dos vossos muros? Nem um furto, nem um roubo, nem uma morte, nem um adultério, nem um ferimento, nem uma falsificação? O pecado sacudiu as sandálias às vossas portas e jurou não voltar aos vossos lares? O caso não é novo; lembra-me ter visto mais de uma vez notícias de fenômenos semelhantes.

O Éden, antes do pecado de Eva, não era mais feliz do que essas vilas brasileiras onde o código se vai tornando letra morta e os juizes verdadeiras inutilidades.

Onde está o segredo de tanta moralidade? Como é que se provê tão eficazmente à higiene da alma? Há nisto matéria para as averiguações dos sábios.

— Mas — juste retour des choses dici-bas — talvez que na próxima sessão do júri, a vila, que desta vez subiu tanto aos olhos da moralidade, apresente um quadro desconsolador de crimes e delitos, de modo a desvanecer a impressão deixada pelo estado anterior.

Tudo é possível neste mundo. Em falta de acontecimentos há sempre um acontecimento que pode entrar em todos os folhetins, e ao qual já me tenho referido muitas vezes — até com risco de monotonia.

É um dever de que não me liberto abrir os olhos à câmara municipal a respeito de uma coisa que não é favor, mas dever de tão alta instituição.

Se a câmara municipal não tem por obrigação cuidar do município, tomo a liberdade de perguntar para que serve, então, e se é para continuar a viver do mesmo modo que os cidadãos, de quatro em quatro anos, vão deitar uma cédula à urna eleitoral.

Longe de mim negar o que a câmara tem feito, mas também longe de mim a idéia de ficar mudo diante do abandono em que certas necessidades municipais estão.

O caminho do Catete, que um homem ao espírito chama — caminho apoplético, — é, por assim dizer, o resumo do estado geral da cidade. As folhas reclamam todos os dias contra o descuido da câmara e dos seus agentes, mas é como se pregasse no deserto.

Todos os sentidos de que aprouve à natureza dotar-nos andam perseguidos e em guerra aberta com a poeira, a imundície, os boqueirões, etc.

Ah! a imundície! Como Lucrecia Bórgia aos convivas de Gennaro, a câmara municipal tomou a peito dizer aos fluminenses, depois que lhes alcança os votos:

Messeigneurs, vous êtes tous empoisonnés.

E fala verdade.

Quando se anunciou a chegada dos augustos noivos de Suas Altezas, disse eu que a câmara tratasse de fazer com que vestíssemos roupa lavada, de algodão embora, mas coisa mais limpa do que os molambos que nós temos a honra de receber das suas ilustríssimas mãos.

Sobreveio o período eleitoral, e manifestou-se a grande febre no município. Então perderam-se as esperanças. A soberania popular — frase que os tipógrafos de todos os países já estão cansados de compor e os leitores de todos os livros e jornais cansados de ler — a soberania popular abafou o grito da necessidade pública, e ninguém achou mau o caminho que ia de casa à paróquia.

A câmara, porém, mostrou-se compenetrada do alto papel que se lhe destinou, e lembrou-se de convidar os munícipes para solenizar o casamento de Sua Alteza Imperial que, como os leitores sabem, terá lugar no sábado.

Constroem-se arcos e coretos em vários pontos da cidade, desde o Aterrado até o largo do Paço, mas essas construções deviam ter sida precedidas de alguns melhoramentos, a fim de não ter lugar a aplicação daquela cantiga popular:

Por cima muita farofa, etc.

Demorar-me neste assunto seria aborrecer os leitores. A primeira condição de quem escreve é não aborrecer.

Tous les genres sont bons, hors le genre ennuyeux.

E só agora vejo, na minha carteira da semana, o apontamento de uma notícia que eu estou certo de que há de alegrar os leitores, sejam escritores ou não.

Segundo me disseram, Sua Majestade o Imperador trata de mandar fazer uma edição das obras completas de Odorico Mendes. Os leitores conhecem, de certo, o nome e as obras do ilustre poeta, cuja morte em Londres as folhas noticiaram não há muitos dias.

O ato imperial honra a memória do ilustre poeta; essa memória e esse ato são duas honras para o nome brasileiro.

Uma folha hebdomadária que se publica nesta corte, denominada Portugal, deu ontem aos seus leitores uma notícia que os enche de júbilo, como a todos os que prezam as letras e a língua que falamos.

De há muito que o autor do Eurico, recolhido à vida privada, assiste silencioso ao movimento de todas as coisas, políticas ou literárias.

Esse silêncio e esse isolamento, por mais legítimas que sejam as suas causas, são altamente prejudiciais à literatura portuguesa.

Mas o culto das musas é, além de um dever, uma necessidade. O espírito que uma vez se votou a ele, dele vive e por ele morre. É uma lei eterna. No meio dos labores pacíficos a que se votou, A. Herculano não pôde escapar ao impulso intimo. O historiador e poeta pode fazer-se agricultor, mas um dia lá se lhe converte o arado em pena, e as musas voltam a ocupar o lugar que se lhes deve. As musas são a fortuna de César; acompanham o poeta através de tudo, na bonança, como na tempestade.

O que se anuncia agora, na correspondência de Lisboa do Portugal, é a publicação próxima de dois livros do mestre: Contos do Vale de Lobos, é o primeiro; o segundo é uma tradução do poema de Ariosto.

Quando se trata de um escritor como Alexandre Herculano, não se encarece a obra anunciada; espera-se e aplaude-se.

Ler as obras dos poetas e dos escritores é hoje um dos poucos prazeres que nos restam ao espírito, em um tempo em que a prosa estéril e tediosa vai substituindo toda a poesia da alma e do coração.

Quando os tempos nem dão para um folhetim, não sei que se possa fazer outra coisa melhor.

Eu por mim já fiz até aqui o que era humanamente possível; pouca diferença vai deste folhetim ao milagre dos pães; e essa mesma é mais nos efeitos do fato que no próprio fato. Quando os leitores chegarem ao fim achar-se-ão vazios como no princípio, sentindo uma fome igual à que sentiam quando começaram a ler.

Só haverá uma satisfação: é a do preenchimento destas páginas inferiores que está a cuidado do mais indigno servo dos leitores preencher todas as semanas.

Vejam se não é assim.

E não cuidem que as seguintes linhas, transcritas do Despertador, de Santa Catarina, entram aqui por enchimento. É uma remessa que julgo de meu dever fazer ao Cruzeiro do Brasil. Leia o colega e admire:

“A estréia do jesuíta Razzini como pregador, no domingo último, é aquela que se podia esperar de quem, ignorando o mais trivial de uma língua, se afoita a ir nela pregar para não ser entendido de quem quer que seja!

“Pergunte-se a maior parte dos que lá foram se entenderam — pitada, — apesar dos calafrios e suores que deviam custar ao pobre do Revma., que raras eram as palavras que não fossem muito ruminadas?

“É a estas coisas que jamais poderemos ser indiferentes: um padre que não conhece absolutamente nada da nossa língua, para que vai pregar nela?… Para fazer rir da mímica que emprega quem se acha nesses apertos?!…

“Porém ainda isso não é tudo, é naquela crisálida que está o futuro da ilustração da nossa esperançosa mocidade! Há de ser esse um dos que vêm fazer parte do professorado no ensino de línguas em o novo estabelecimento; o mesmo que tem por obrigação fazer compreender aos seus discípulos comparativamente as belezas de uma língua com as da outra, que tem de descer aos seus modos mais particulares (idiotismos) para dar em equivalentes, se não iguais, ao menos os mais aproximados possíveis. Como serão preenchidas condições tão essenciais, e indispensáveis ao ensino? Veja o público que a maior parte do que importamos em todas as espécies são objetos de carregação, como os chama o vulgo; dos mestres, por esta amostra, já podemos fazer juízo seguro”.

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O Brasil acaba de perder um dos seus primeiros poetas…

judith de caravaggio
Judith e Holofernes, de Caravaggio, 1598

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, em 3 de outubro de 1864, há exatos 144 anos.

O Brasil acaba de perder um dos seus primeiros poetas. Se ele tem em alguma conta a glória das musas, o dia em que um destes espíritos deixa a terra, para voar à eternidade, deve ser um dia de luto nacional.

E aqui o luto seria por um duplo motivo: luto por mágoa e luto por vergonha. Mágoa da perda de um dos maiores engenhos da nossa terra, talento robusto e original, imaginação abundante e fogosa, estro arrojado e atrevido. Vergonha de haver deixado inserir no livro da nossa história a página negra do abandono e da penúria do poeta, confirmando hoje, como no século de Camões, a dolorosa verdade destes versos:

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça, e na rudeza

De uma austera, apagada e vil tristeza.

Todos sabem que a vida de Laurindo Rabelo foi uma longa série de martírios. Se não tivesse altas e legítimas aspirações, como todos os que sentem vibrar em si uma corda divina, os padecimentos ser-lhe-iam menos sensíveis; mas, cheio daquela vida intelectual que o animava, dotado de asas capazes de subir às mais elevadas esferas, o poeta sentia-se duplamente martirizado, e a sua paixão atingia proporções dos maiores exemplos de que reza a história literária de todos os países.

A figura de Prometeu é uma figura gasta em alambicados necrológios; mas eu não sei de outra que melhor possa representar a existência atribulada deste infeliz poeta, espicaçado, não por um, mas por dois abutres, a fatalidade e a indiferença. A fatalidade — se é lícito invocar este nome — assentou-se-lhe no lar doméstico, desde que ele abriu olhos à vida; mas, se ao lado dela não se viesse depois sentar a indiferença, a vida do poeta seria outra, e aquele imenso espírito não teria atravessado por este mundo — amargurado e angustiado.

Consola um pouco saber que, na via dolorosa que o poeta percorreu, se já lhe não assistia a fé nos homens, nunca se lhe amorteceu a fé em Deus. Os sentimentos religiosos de Laurindo Rabelo eram os mais profundos e sinceros; ele tinha em si a consciência da justiça divina, em quem esperava, como o último refúgio dos desamparados deste mundo. Em seus últimos momentos deu ainda provas disso; o seu canto do cisne foi uma oração que ele improvisou para ajudar-se a morrer. Os que ouviram essa inspiração religiosa dizem que não se podia ser nem mais elevado nem mais comovente. Assim acabou o poeta cristão.

Laurindo Rabelo era casado há alguns anos. A família foi então para ele o santuário do seu coração e o asilo da sua musa. Os seus labores nestes últimos tempos tendiam a deixar à companheira dos seus dias uma garantia de futuro. Não tinha outras ambições.

Um grande talento, uma grande consciência, um grande coração, eis o que se perdeu em Laurindo Rabelo. Do talento ficam aí provas admiráveis, nos versos que escreveu e andam dispersos em jornais e na memória dos amigos. Era um poeta na verdadeira acepção da palavra; estro inspirado e imaginação fecunda, falando a língua de Bocage e admirando os que o ouviam e liam, tão pronta era a sua musa, tão opulenta a sua linguagem, tão novos os seus pensamentos, tão harmoniosos os seus versos.

Era igualmente uma grande consciência; consciência aberta e franca, dirigida por aquele rigorismo de Alceste, que eu ouvi censurar a mais de um Filinto do nosso tempo. O culto da justiça e a estima do bem eram-lhe iguais aos sentimentos de revolta produzidos pela injustiça e pelo mal. Ele desconhecia o sistema temperado de colorir os vícios medíocres e cantar as virtudes ilusórias.

Quanto ao coração, seus amigos e companheiros sabem se ele o tinha grande e nobre. Quando ele se abria, aos afetos era sempre sem reservas nem refolhos; sabia amar o que era digno de ser amado, sabia estimar o que era digno de ter estima.

Se este coração, se esta consciência, se este talento acaba de fugir aos nossos olhos, a pátria que o perdeu deve contar o dia da morte dele na lista dos seus dias lutuosos.

Há oito dias comemorava eu uma perda literária do país; hoje comemoro outra, e Deus sabe quantas não sucederão ainda nesta época infeliz para as musas! — Assim se vão as glórias pátrias, os intérpretes do passado diante das gerações do futuro, os que sabem, no turbilhão que leva as massas irrefletidas e impetuosas, honrar o nome nacional e construir o edifício da grandeza da pátria.

Ouço que se pretende fazer uma edição dos escritos de Laurindo Rabelo. É um duplo dever e uma dupla necessidade; o produto auxiliará a família viúva; a obra tomará lugar na galeria literária do Brasil.

Quanto a ti, infeliz poeta, pode-se dizer hoje o que tu mesmo dizias em uma hora de amarga tristeza:

A tua triste existência

Foi tão pesada e tão dura,

Que a pedra da sepultura

Já te não pode pesar.

Cometi uma falta no folhetim de domingo passado; não falei de uma obra e de um artista. Cumpre-me reparar a falta.

Quando se festejou a Exaltação da Cruz na igreja de Santa Cruz dos Militares foi inaugurado o retrato a óleo do atual provedor o Sr. general Antonio Nunes de Aguiar. É um retrato de corpo inteiro.

A obra foi olhada como digna de apreço e de estima. Estimar a obra de arte é prestar-lhe uma honra elevada. Os conhecedores e amadores não hesitaram em dar este gênero de homenagem ao trabalho com que a irmandade da Cruz resolvera perpetuar na memória dos vindouros os seus sentimentos de gratidão.

É que realmente a simples vista do quadro faz adivinhar um pincel adestrado e inteligente. O nome do autor corresponde a essa apreciação. O Sr. Rocha Fragoso é um dos nossos artistas mais capazes e mais dignos de apreço. Dotado de talento real para a pintura, foi um discípulo esperançoso da nossa academia, e quando mais tarde voltou de Roma, duplamente condecorado, — com o aplauso dos mestres e com a comenda de S. Gregório Magno, — os seus irmãos de arte o receberam como uma honra da classe.

Dando ao Sr. Rocha Fragoso os meus sinceros aplausos, não deixarei de consignar aqui o desejo de que novas provas de seu apreciado talento venham conquistar novos aplausos, dando-me ainda o prazer de escrever muitas vezes o seu nome neste folhetim.

Que a arte e os artistas vão ganhando neste país um lugar distinto, é o melhor desejo de todo o coração verdadeiramente brasileiro. Vem a propósito mencionar mais sentou a tragédia Judith e a comédia As primeiras proezas de Richelieu.

Calçar na mesma noite o coturno de Melpomene e a chinela de Talia, passar da tenda de Holofernes e dos rochedos de Betúlia aos paços de Luiz XIV e ao camarim do sobrinho do Cardeal, era dar prova de um talento vasto e variado. A artista quis entrar nessa prova, que, aliás, já dera ao público do seu país. Aquela circunstância e a de ser o espetáculo em benefício da artista encheram o vasto salão do teatro Lírico.

Choveram nessa noite aplausos, flores e coroas.

O primeiro espetáculo que se ofereceu aos olhos do espectador ao levantar o pano, foi, como já se tem visto em outras peças, o de um asseio e ordem cênica a que não andamos muito acostumados. Essa primeira impressão é já de si agradável e dispõe o espírito do espectador.

Como sempre, o espectador assiste distraído às primeiras cenas até a entrada de Emília das Neves, e daí em diante é a eminente atriz quem lhe atrai exclusivamente a atenção.

Os dotes que eu já tive ocasião de reconhecer em Emília das Neves, e que são de primeira ordem, acham-se perfeitamente acomodados à figura de Judith e às condições da tragédia; voz, figura, gesto, fisionomia, tudo corresponde a uma ação trágica. Emília das Neves, que possui estas duas condições — a inteligência e o natural — uma para compreender, outra para reproduzir, soube entrar no espírito do papel e desempenhá-lo ao vivo, mediante os recursos de uma arte que lhe é familiar.

Se houvera tempo e espaço para estabelecer preferências nas diversas situações da tragédia, eu desenvolveria os motivos pelos quais a eminente artista me agradou mais no 2°, no 3° e no 5° atos. Limito-me a assinalar aqui essas preferências, que de modo nenhum concluem contra o desempenho, aliás excelente, do resto do papel.

Mas quem dirá que a figura trágica, a voz potente, a gesticulação larga, mas sóbria, como deve ser, — quem dirá enfim, que a atriz talhada para a reprodução das grandes paixões, pode tão facilmente acomodar-se ao gênero familiar da comédia, em que sorri, brinca, moteja, em que de águia se faz pomba, apenas com o intervalo de um quarto de hora?

Conheço alguns artistas que possuem o dom de enternecer no drama e alegrar na comédia; mas não são muitos, de certo, posto que quase todos procurem vencer a mesma dificuldade. Esta dificuldade só muita natureza e muita arte podem vencei-a; se eu admiro, portanto, a intenção de todos os cometimentos desta ordem, estou muito longe de admirar-lhes os resultados.

Com a artista de que me ocupo duvido que se possa exigir mais. Mesmo pondo de parte a circunstância de ter representado na mesma noite os dois gêneros, o que tornava mais flagrante e mais vivo o contraste, o desempenho do papel do menino duque não podia ser mais completo do que foi. Fora sem dúvida para desejar que, em vez das Proezas de Richelieu, comédia do gênero anedótico, sem grande alcance nem grandes pretensões literárias, a empresa fizesse representar uma verdadeira comédia, uma comédia da boa escola, onde o talento de Emília das Neves pudesse entrar no largo estudo que a comédia das Proezas lhe não permitiu.

É verdade, porém, que uma comédia nessas condições não teria um pessoal completo, à exceção da artista de que me ocupo, e do Sr. Gusmão, que não deixarei de mencionar aqui pelo desempenho do barão de Belle-Chasse.

O papel de madame Patin, burguesa ridícula que o leitor pode encontrar, até com o mesmo nome, mas tratada com outro talento, no Chevalier à la mode, comédia de Dancourt, sofreu com o desempenho, não tanto por estar longe de ser completo, como pelo contraste que se apresentava à memória, comparando-se com o excelente desempenho que fez há anos a eminente artista dramática Gabriela da Cunha.

Dizem que a peça escolhida para a próxima recita é a Adriana Lecouvreur.

Terminarei anunciando uma transmigração; morreu a Cruz, mas a alma passou para o Cruzeiro do Brasil — continuando assim a mesma Cruz, revestida de novas galas, segundo a expressão singularmente modesta da redação.

Procurei as novas galas, mas confesso ingenuamente que as não encontrei. Quer-me parecer que ficaram na intenção dos redatores.talia,

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