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Os dois maiores acontecimentos dos últimos trinta anos nesta cidade

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O Jornal Gazeta de Notícias foi fundado em 2 de agosto de 1875

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 6 de agosto de 1893, há exatos 116 anos.

A Gazeta completou os seus dezoito anos. Ao sair da festa de família com que ela celebrou o seu aniversário, fui pensando no que me disse um conviva, excelente membro da casa, a saber, que os dois maiores acontecimentos dos últimos trinta anos nesta cidade foram a Gazeta e o bond.

Tens razão, Capistrano. Um e outro fizeram igual revolução. Há um velho livro do Padre Manuel Bernardes, cujo título, Pão partido em pequeninos, bem se pode aplicar à ação dos dois poderosos instrumentos de transformação. Antigamente as folhas eram só assinadas; poucos números avulsos se vendiam e, ainda assim, era preciso ir comprá-los ao balcão, e caro. Quem não podia assinar o Jornal do Commercio, mandava pedi-lo emprestado, como se faz ainda hoje com os livros, — com esta diferença que o Jornal era restituído — e com esta semelhança: que voltava mais ou menos enxovalhado.

As outras folhas — não tinham o domínio da notícia e do anúncio da publicação solicitada, da parte comercial e oficial; demais, serviam a partidos políticos. A mor parte delas (para empregar uma comparação recente) vivia o que vivem as rosas de Malherbe.

Quando a Gazeta apareceu, o bond começava. A moça que vem hoje à Rua do Ouvidor, sempre que lhe parece, à hora que quer, com a mamãe, com a prima, com a amiga, porque tem o bond à porta e à mão, não sabe o que era morar fora da cidade ou longe do centro. Tínhamos diligências e ônibus; mas eram poucos, com poucos lugares, creio que oito ou dez, e poucas viagens. Um dos lugares era eliminado para o público. Ia nele o recebedor, um homem encarregado de receber o preço das passagens e abrir a portinhola para dar entrada ou saída aos passageiros. Um cordel, vindo pelo tejadilho, punha em comunicação o cocheiro e o recebedor; este puxava, aquele parava ou andava. Mais tarde, o cocheiro acumulou os dois ofícios. Os veículos eram fechados, como os primeiros bonds, antes que toda a gente preferisse os dos fumantes e inteiramente os desterrasse.

— Já passou a diligência? Lá vem o ônibus! Tais eram os dizeres de outro tempo. Hoje não há nada disso. Se algum homem, morador em rua que atravesse a da linha, grita por um bond que vai passando ao longe, não é porque os veículos sejam raros, como outrora, mas porque o homem não quer perder este bond, porque o bond pára, e porque os passageiros esperam dois ou três minutos, quietos. Esperar, se me não falha a memória, é a última palavra do Conde de Monte-Cristo. Todos somos Monte-Cristos, posto que o livro seja velho. Falemos à gente moça, à gente de vinte e cinco anos, que era apenas desmamada, quando se lançaram os primeiros trilhos, entre a Rua Gonçalves Dias e o largo do Machado. O bond foi posto em ação, e a Gazeta veio no encalço. Tudo mudou. Os meninos, com a Gazeta debaixo do braço e pregão na boca, espalhavam-se por essas ruas, berrando a notícia, o anúncio, a pilhéria, a crítica, a vida, em suma, tudo por dois vinténs escassos. A folha era pequena; a mocidade do texto é que era infinita. A gente grave, que, quando não é excessivamente grave, dá apreço à nota alegre, gostou daquele modo de dizer as coisas sem retesar os colarinhos. A leitura impôs-se, a folha cresceu, barbou, fez-se homem, pôs casa; toda a imprensa mudou de jeito e de aspecto.

Não me puxem as orelhas pelo que disse acerca das folhas políticas. Se não eram vivedouras outrora, se hoje o não podem ser sem outro algum condimento, a culpa não é minha. E digo mal, políticas; partidárias é que deve ser. De política também tratam as outras. A questão é um pouco mais longa que esta página, e mais profunda que esta crônica; mas sempre lhes quero contar uma história.

Um telegrama datado de Buenos-Aires, 3, deu notícia de que a Nación, órgão do General Mitre, aconselha a união de todos os cidadãos, no meio da desordem, que vai por algumas províncias argentinas. Ora, ouçam a minha história que é de 1868. Nesse ano, Mitre, que assumira o poder em 1860, depois de uma revolução, concluiu os dois prazos constitucionais de presidente; fizera-se a eleição do presidente e saíra eleito Sarmiento, que então era representante diplomático da república nos Estados-Unidos. Vi este Sarmiento, quando passou por aqui para ir tomar conta do governo argentino. Boas carnes, olhos grandes, cara rapada. Tomava chá no Club Fluminense, no momento em que eu ia fazer o mesmo, depois de uma partida de xadrez com o professor Palhares. Pobre Palhares! Pobre Club Fluminense! Era um chá sossegado, entre nove e dez horas, um baile por mês, moças bonitas, uma principalmente… Une surtout, un ange… O resto está em Victor Hugo. Un ange, une jeune espagnole. A diferença é que não era espanhola. Sarmiento vinha, creio eu, do paço de S. Cristóvão ou do Instituto Histórico; estava de casaca, bebia o chá, trincava torradas, com tal modéstia que vinguem diria que ia governar uma nação.

Quando Sarmiento chegou a Buenos-Aires e tomou conta do governo, quiseram fazer a Mitre, que o entregava, uma grande manifestação política. A idéia que vingou foi criar um jornal e dar-lho. Esse jornal é esta mesma Nación que é ainda órgão de Mitre, e que ora aconselha (um quarto de século depois) a união de todos os cidadãos. É um jornal enorme de não sei quantas páginas. Em trocos miúdos, os jornais partidários precisam de partido, um partido faz- se com homens que votem, que paguem, que leiam.

Há ler sem pagar; não é a isso que me refiro. Há também pagar sem ler; falo de outra coisa. Digo ler e pagar, digo votar, digo discutir, escolher, fazer opinião. Sem ela, sem uma boa opinião ativa, pode haver algumas veleidades, mas não há vontade. E a vontade é que governa o mundo.

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Todas as coisas têm a sua filosofia…

O bonde

Um bonde na avenida Marechal Floriano, no Rio de Janeiro

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 23 de outubro de 1892, há exatos 116 anos.

Todas as coisas têm a sua filosofia. Se os dois anciãos que o bonde elétrico atirou para a eternidade esta semana, houvessem já feito por si mesmos o que lhes fez o bonde, não teriam entestado com o progresso que os eliminou. É duro dizer; duro e ingênuo, um pouco à La Palisse; mas é verdade. Quando um grande poeta deste século perdeu a filha, confessou, em versos doloridos, que a criação era uma roda que não podia andar sem esmagar alguém. Por que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobres veículos?

Há terras, onde as companhias indenizam as vítimas dos desastres (ferimentos ou mortes) com avultadas quantias, tudo ordenado por lei. É justo; mas essas terras não têm, e deviam ter, outra lei que obrigasse os feridos e as famílias dos mortos a indenizarem as companhias pela perturbação que os desastres trazem ao horário do serviço. Seria um equilíbrio de direitos e de responsabilidades. Felizmente, como não temos a primeira lei, não precisamos da segunda, e vamos morrendo com a única despesa do enterro e o único lucro das orações.

Falo sem interesse. Dado que venhamos a ter as duas leis, jamais a minha viúva indenizará ou será indenizada por nenhuma companhia. Um precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que não passava pela frente de um bonde, sem calcular a hipótese de cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar ao outro lado. Era um bom conselho, como o Doutor Sovina era uma boa farsa, antes das farsas do Pena. Eu, o Pena dos cautelosos, levo o cálculo adiante: calculo ainda o tempo de escovar-me no alfaiate próximo. Próximo pode ser longe, mas muito mais longe é a eternidade.

Em todo caso, não vamos concluir contra a eletricidade. Logicamente, teríamos de condenar todas as máquinas, e, visto que há naufrágios, queimar todos os navios. Não, senhor. A necrologia dos bondes tirados a burros é assaz comprida e lúgubre para mostrar que o governo de tração não tem nada com os desastres. Os jornais de quinta-feira disseram que o carro ia apressado, e um deles explicou a pressa, dizendo que tinha de chegar ao ponto à hora certa, com prazo curto. Bem; poder-se-iam combinar as coisas, espaçando os prazos e aparelhando carros novos, elétricos ou muares, para acudir à necessidade pública. Digamos mais cem, mais duzentos carros. Nem só de pão vive o acionista, mas também da alegria e da integridade dos seus semelhantes.

Convenho que, durante uns quatro meses, os bondes elétricos andem muito mais aceleradamente que os outros, para fugir ao riso dos vadios e à toleima dos ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade é uma versão do processo culinário à la minute, e podem vir a enlamear o veículo com alcunhas feias. Lembra-me (era bem criança) que, nos primeiros tempos do gás no Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gás virou lamparina. E o dito ficou e impôs-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, às belezas murchas, a todas as coisas decaídas.

Ah! se eu for a contar memórias da infância, deixo a semana no meio, remonto os tempos e faço um volume. Paro na primeira estação, 1864, famoso ano da suspensão de pagamentos (ministério Furtado); respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das ações atacou a esta pobre cidade, que só arribou à força do quinino do desengano. Remonto ainda e vou a…

Aonde? Posso ir até antes do meu nascimento, até Law. Grande Law! Também tu tiveste um dia de celebridade; depois, viraste embromador e caíste na casinha da história, o lugar dos lava-pratos. E assim irei de século a século, até o paraíso terrestre, forma rudimentária do encilhamento, onde se vendeu a primeira ação do mundo. Eva comprou-a à serpente, com ágio, e vendeu-a a Adão, também com ágio, até que ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do paraíso terrestre, ao Fiat lux, que, bem estudado ao gás do entendimento humano, foi o princípio da falência universal.

Não; cuidemos só da semana. A simples ameaça de contar as minhas memórias diminuiu-me o papel em tal maneira, que é preciso agora apertar as letras e as linhas.

Semana quer dizer finanças. Finanças implicam financeiros. Financeiros não vão sem projetos, e eu não sei formular projetos. Tenho idéias boas, e até bonitas, algumas grandiosas, outras complicadas, muito 2%, muito lastro, muito resgate, toda a técnica da ciência; mas falta-me o talento de compor, de dividir as idéias por artigos, de subdividir os artigos em parágrafos, e estes em letras a b c; sai-me tudo confuso e atrapalhado. Mas por que não farei um projeto financeiro ou bancário, lançando-lhe no fim as palavras da velha praxe: salva a redação? Poderia baralhar tudo, é certo; mas não se joga sem baralhar as cartas; de outro modo é embaraçar os parceiros.

Adeus. O melhor é ficar calado. Sei que a semana não foi só de finanças, mas também de outras coisas, como a crise de transportes, a carne, discursos extraordinários ou explicativos, um projeto de estrada de ferro que nos põe às portas de Lisboa, e a mulher de César, que reapareceu no seio do parlamento. Vi entrar esta célebre senhora por aquela casa, e, depois de alguns minutos, via-se sair. Corri à porta e detive-a: — “Ilustre Pompéia, que vieste fazer a esta casa?” — “Obedecer ainda uma vez à citação da minha pessoa. Que queres tu? meu marido lembrou-se de fazer uma bonita frase, e entregou-me por todos os séculos a amigos, conhecidos e desconhecidos.”

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Toda esta semana foi de amores…

O nascimento de Vênus, 1483, Sandro Botticelli
O nascimento de Vênus, 1483, Sandro Botticelli

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 21 de outubro de 1894, há exatos 114 anos.

Toda esta semana foi de amores. A Gazeta deu-nos o capítulo exotérico do anel de Vênus desenhado a traço grosso na mão aberta do costume. Da Bahia veio a triste notícia de um assassinato por amor, um cadáver de moça que apareceu, sem cabeça nem vestidos. Aqui foi envenenada uma dama. Julgou-se o processo do bígamo Louzada. Enfim, o intendente municipal Dr. Capelli fundamentou uma lei regulando a prostituição pública, — “a vaga Vênus”, diria um finado amigo meu, velho dado a clássicos.

Outro amigo meu, que não gostava de romances, costumava excetuar tão somente os de Julio Verne, dizendo que neles a gente aprendia. O mesmo digo dos discursos do Dr. Capelli. Não são simples justificações rápidas e locais de um projeto de lei, mas verdadeiras monografias. Que se questione sobre a oportunidade de alguns desenvolvimentos, é admissível, mas ninguém negará que tais desenvolvimentos são completos, e que o assunto fica esgotado. Quanto ao estilo, meio didático, meio imaginoso, está com o assunto. Não perde por imaginoso. Na historia há Macaulay e Michelet, e tudo é história. Nas nossas câmaras legislativas perde-se antes por seco e desordenado. Moços que brilharam nas associações acadêmicas e literárias entendem que, uma vez entrados na deliberação política, devem despir-se da clâmide e da metáfora, e falar chão e natural. Não pode ser; o natural e o chão têm cabida no parlamento, quando são as próprias armas do lutador; mas se este as possui mais belas, com incrustações artísticas e ricas, é insensato deixá-las à porta e receber do porteiro um canivete ordinário.

Amor! assunto eterno e fecundo! Primeiro vagido da terra, último estertor da criação! Quem, falando de amor, não sentir agitar-se-lhe a alma e reverdecer a natureza, pode crer que desconhece a mais profunda sensação da vida e o mais belo espetáculo do universo. Mas, por isso mesmo que o amor é assim, cumpre que não seja de outro modo, não permitir que se corrompa, que se desvirtue, que se acanalhe. Onde e quando não for possível tolher o mal, é necessário acudir-lhe com a lei, e obstar à inundação pela canalização. Creio ser esta a tese do discurso do Sr. Capelli. Não a pode haver mais alta nem mais oportuna.

Direi de passagem que apareceram ontem alguns protestos contra dois ou três períodos do discurso, vinte e quatro horas depois deste publicado, por parte de intendentes que declaram não os ter ouvido. Não conheço a acústica da sala das sessões municipais; não juro que seja má, visto que o texto impresso do discurso está cheio de aplausos, e houve um ponto em que os apartes foram muitos e calorosos. Um dos intendentes que ora protestam atribui as injustiças de tais trechos à revisão do manuscrito. Assim pode ser; em todo caso, as intenções estão salvas.

O que fica do discurso, excluídos esses trechos, e mais um que não cito para não alongar a crônica, é digno de apreço e consideração. Não há monografia do amor, digna de tal nome, que não comece pelo reino vegetal. O Sr. Capelli principia por aí, antes de passar ao animal; chegando a este, explica a divisão dos sexos e o seu destino. Num período vibrante, mostra o nosso físico alcançando a divinização, isto é, vindo da promiscuidade até Epaminondas, que defende Tebas, até Coriolano, que cede aos rogos da mãe, até Sócrates, que bebe a cicuta. Todos os nomes simbólicos do amor espiritual são assim atados no ramalhete dos séculos: Colombo, Gutenberg, Joana d’Arc, Werther, Julieta, Romeu, Dante e Jesus Cristo. Feito isso, como o principal do discurso era a prostituição, o orador entra neste vasto capítulo.

O histórico da prostituição é naturalmente extenso, mas completo. Vem do mundo primitivo, Caldéia, Egito, Pérsia, etc., com larga cópia de nomes e ações, mitos e costumes. Daí passa à Grécia e a Roma. As mulheres públicas da Grécia são estudadas e nomeadas com esmero, os seus usos descritos minuciosamente, as anedotas lembradas — lembradas igualmente as comédias de Aristófanes, e todos quantos, homens ou mulheres, estão ligados a tal assunto. Roma oferece campo vasto, desde a loba até Heliogábalo. Não transcrevo os nomes; teria de contar a própria história romana. Nenhum escapou dos que valiam a pena, porém de imperadores ou poetas, de deusas ou matronas, as instituições com os seus títulos, as depravações com as suas origens e conseqüências. Chegando a Heliogábalo, mostrou o orador que a degeneração humana tocara o zênite. “O momento histórico era solene, disse ele, foi então que apareceu Cristo.”

Cristo trouxe naturalmente à memória a Madalena, e depois dela algumas santas, cuja vida impura se regenerou pelo batismo e pela penitência. A apoteose cristã é brilhante; mas história é historia, e força foi dizer que a prostituição voltou ao mundo. Na descrição dessa recrudescência do mal, nada é poupado nem escondido, seja a hediondez dos vícios, seja a grandeza da consternação. Aqui ocorreu um incidente que perturbou a serenidade do discurso. O orador apelou para um novo Cristo, que viesse fazer a obra do primeiro, e disse que esse Cristo novo era Augusto Comte

Muitos intendentes interromperam com protestos, e estavam no seu direito, uma vez que têm opinião contrária; mas podiam ficar no protesto. Não sucedeu assim. O Sr. Maia de Lacerda bradou: Oh! oh! e retirou-se da sala. O Sr. Capelli insistiu, os protestos continuaram.

O Sr. Barcellos afirmou que o positivismo era doutrina subversiva. Defendeu-se o orador, pedindo que lhe respeitassem a liberdade de pensamento. Travou-se diálogo. Cresceram os não-apoiados. O Sr. Capelli parodiou Voltaire, dizendo que, se Augusto Comte não tivesse existido, era preciso inventá-lo. O Sr. Pinheiro bradou: “ Chega de malucos!”. Enfim, o orador compreendendo que iria fugindo ao assunto, limitou-se a protestar em defesa das suas idéias e continuou.

Esse lastimável incidente ocorreu na terceira coluna do discurso, e ele teve sete e meia. Vê-se que não posso acompanhá-lo, e, aliás, a parte que então começou não foi a menos interessante. O discurso enumera as causas da prostituição. A primeira é a própria constituição da mulher. Segue-se o erotismo, e a este propósito cita o célebre verso de Hugo: Oh! n’insultez jamais une femme qui tombe! Vem depois a educação, e explica que a educação é preferível à instrução… O luxo e a vaidade são as causas imediatas. A escravidão foi uma. Os internatos, a leitura de romances, os costumes, a mancebia, os casamentos contrariados e desproporcionados, a necessidade, a paixão e os D. Juans. De passagem, historiou a prostituição no Rio de Janeiro, desde D. João VI, passando pelos bailes do Rachado, do Pharoux, do Rocambole e outros. Nomeando muitas ruas degradadas pela vida airada, repetia naturalmente muitos nomes de santos, dando lugar a este aparte do Sr. Duarte Teixeira: “Arre! quanto santo!”

Vieram finalmente os remédios, que são quatro: a educação da mulher, a proibição legal da mancebia, o divórcio e a regulamentação da prostituição pública. Toda essa parte é serena. Há imagens tocantes. “No pórtico da humanidade a mulher aparece como a estrela do amor”. Depois, vem o projeto, que contém cinco artigos. Será aprovado? Há de ser. Será cumprido.

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Vamos ter, no ano próximo, uma visita de grande importância…

Louise Michelle
Louise Michelle

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 1895, há exatos 113 anos.

Vamos ter, no ano próximo, uma visita de grande importância. Não é Leão XIII, nem Bismarck, nem Crispi, nem a rainha de Madagascar, nem o imperador da Alemanha, nem Verdi, nem o Marquês Ito, nem o Marechal Yamagata. Não é terremoto nem peste. Não é golpe de Estado nem cambio a 27. Para que mais delongas? É Luísa Michel.

Li que um empresário americano contratou a diva da anarquia pare fazer conferências nos Estados Unidos e na América do Sul. Há idéias que só podem nascer na cabeça de um norte-americano. Só a alma ianque é capaz de avaliar o que lhe renderá uma viagem de discurso daquela famosa mulher, que Paris rejeita e a quem Londres dá a hospedagem que distribui a todos, desde os Bourbons até os Barbès. De momento, não posso afirmar que Barbès estivesse em Londres; mas ponho-lhe aqui o nome, por se parecer com Bourbons e contrastar com eles nos princípios sociais e políticos. Assim se explicam muitos erros de data e de biografia: necessidades de estilo, equilíbrios de oração.

Desde que li a notícia da vinda de Luísa Michel ao Rio de Janeiro tenho estado a pensar no efeito do acontecimento. A primeira coisa que Luísa Michel verá, depois da nossa bela baía, é o cais Pharoux atulhado de gente curiosa, muda, espantada. A multidão far-lhe-á alas, com dificuldade, porque todos quererão vê-la de perto, a cor dos olhos, o modo de andar, a mala. Metida na cabeça com o empresário e o intérprete, irá pare o Hotel dos Estrangeiros, onde terá aposentos cômodos e vastos. Os outros hóspedes, em vez de fugirem à companhia, quererão viver com ela, respirar o mesmo ar, ouvi-la falar de política, pedir-lhe notícias da comuna e outras instituições.

Dez minutos depois de alojada, receberá ela um cartão de pessoa que lhe deseja falar: é o nosso Luís de Castro que vai fazer a sua reportagem fluminense. Luísa Michel ficará admirada da correção com que o representante da Gazeta de Notícias fala francês. Perguntar-lhe-á se nasceu em França.

—Não, minha senhora, mas estive lá algum tempo; gosto de Paris. amo a língua francesa. Venho da parte da Gazeta de Notícias pare ouvi-la sobre alguns pontos; a entrevista sairá impressa amanhã, com o seu retrato. Pelo meu cartão, terá visto que somos xarás: a senhora é Luísa, eu sou Luís. Vamos, porém, ao que importa…

Acabada a entrevista, chegará um empresário de teatro, que vem oferecer a Luísa Michel um camarote para a noite seguinte. Um poeta irá apresentar-lhe o último livro de versos: Dilúvios Sociais. Três moças pedirão à diva o favor de lhe declarar se vencerá o carneiro ou o leão.

— O carneiro, minhas senhoras; o carneiro é o povo, há de vencer, e o leão será esmagado.

— Então não devemos comprar no leão?

— Não comprem nem vendam. Que é comprar? Que é vender? Tudo é de todos. Oh! esqueçam essas locuções, que só exprimem idéias tirânicas.

Logo depois virá uma comissão do Instituto Histórico, dizendo-lhe francamente que não aceita os princípios que ela defende, mas, desejando recolher documentos e depoimentos para a história pátria precisa saber até que ponto o anarquismo e o comunismo estão relacionados com esta parte da América. A diva responderá que por ora, além do caso Amapá, não há nada que se possa dizer verdadeiro comunismo aqui. Traz, porém, idéias destinadas a destruir e reconstituir a sociedade, e espera que o povo as recolha para o grande dia. A comissão diz que nada tem com a vitória futura, e retira-se.

É noite a diva quer jantar; está a cair de fome; mas anuncia-se outra comissão, e por mais que o empresário lhe diga que fica para outro dia ou volte depois de jantar, a comissão insiste em falar com Luísa Michel. Não vem só felicitá-la, vem tratar de altos interesses da revolução; pede-lhe apenas quinze minutos. Luísa Michel manda que a comissão entre.

— Madama, dirá um dos cinco membros, o principal motivo que nos traz aqui é o mais grave para nós. Vimos pedir que V. Exa. nos ampare e proteja com a palavra que Deus lhe deu. Sabemos que V. Exa. vem fazer a revolução, e nós a queremos, nós a pedimos. . .

— Perdão, venho só pregar idéias.

— Idéias bastam. Desde que pregue as boas idéias revolucionárias podemos considerar tudo feito. Madama, nós vimos pedir-lhe socorro contra os opressores que nos governam, que nos logram, que nos dominam, que nos empobrecem: os locatários. Somos representantes da União dos Proprietários. V. Exa. há de ter visto algumas casas ainda que poucas, com uma placa em que está o nome da associação que nos manda aqui.

Luisa Michel, com os olhos acesos, cheia de comoção, dirá que, tendo chegado agora mesmo, não teve tempo de olhar para as casas; pede à comissão que lhe conte tudo. Com que então os locatários?. ..

— São os senhores deste país, madama. Nós somos os servos; daí a nossa União.

—Na Europa é o contrário, observa; os locatários, os proletários, os refratários…

— Que diferença! Aqui somos nós que nos ligamos, e ainda assim poucos, porque a maior parte tem medo e retrai-se. O inquilino é tudo. O menor defeito do inquilino, madama, é não pagar em dia; há-os que não pagam nunca, outros que mofam do dono da casa. Isto é novo, data de poucos anos. Nós vivemos há muito, e não vimos coisa assim. Imagine V. Exa. — Então os locatários são tudo? — Tudo e mais alguma coisa. Luisa Michel, dando um salto: — Mas então a anarquia está feita, o comunismo está feito justamente madama. É a anarquia…

—Santa anarquia, caballero, —interromperá a diva, dando este tratamento espanhol ao chefe da comissão,—santa, três vezes santa anarquia! Que me vindes pedir. vós outros, proprietários? que vos defenda os aluguéis? Mas que são aluguéis? Uma convenção precária, um instrumento de opressão, um abuso da força. Tolerado como a tortura, a fogueira e as prisões, os aluguéis têm de acabar como os demais suplícios. Vós estais quase no fim. Se vos ligais contra os locatários, é que a vossa perda é certa. O governo é dos inquilinos. Não são já os aristocratas que têm de ser enforcados: sereis vós:

Ça ira, ça ira, ça i’a,
Les propriétaires à la lanterne!

Não entendendo mais que a última palavra, a comissão nem espera que o intérprete traduza todos os conceitos da grande anarquista; e, sem suspeitar que faz impudicamente um trocadilho ou coisa que o valha, jura que é falso, que os proprietários não põem lanternas nas casas, mas encanamentos de gás. Se o gás está caro, não é culpa deles, mas das contas belgas ou do gasto excessivo dos inquilinos. Há de ser engraçado se, além de perderem os aluguéis, tiverem de pagar o gás. E as penas d’água? as décimas? Os consertos?

Luísa Michel aproveita uma pausa da comissão para soltar três vivas à anarquia e declarar ao empresário americano que embarcará no dia seguinte para ir pregar a outra parte. Não há que propagar neste país, onde os proprietários se acham com tão miserável e justa condição que já se unem contra os inquilinos; a obra aqui não precisava discursos. O empresário, indignado, saca do bolso o contrato e mostra-lho. Luísa Michel fuzila impropérios. Que são contratos? pergunta. O mesmo que aluguéis,—uma espoliação. Irrita-se o empresário e ameaça. A comissão procura aquietá-lo com palavras inglesas: Time is money, five o’clock… O intérprete perde-se nas traduções. Eu, mais feliz que todos, acabo a semana.

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Não se diga que a febre amarela tem medo ao saneamento; mais depressa o saneamento terá medo à febre amarela…

Morte de Carlos Gomes
Morte de Carlos Gomes, inspirada num quadro de De Angelis pertencente à Prefeitura de Belém

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1896, há exatos 112 anos.

Não se diga que a febre amarela tem medo ao saneamento; mais depressa o saneamento terá medo à febre amarela. Em vez de o temer, pôs a ponta da orelha de fora esta semana, e se a tinha posto antes, não sei; eu não sou leitor assíduo de estatísticas. Não nego o que valem as lições que dão, e a necessidade que há delas para conhecer a vida e a economia dos Estados; mas entre negar e adorar há um meio termo, que é a religião de muita gente.

A ponta da orelha que eu vi, foi um caso único do dia 15, publicado ontem, 17. Não tem valor, comparado naturalmente a outras doenças; mal tal é a má fama daquela perversa, que um só óbito basta para assustar mais que um obituário inteiro de várias enfermidades, ou até de uma só. O vulgo não reflete que, bem observadas as coisas, ela nunca saiu daqui; uns anos cochila e cabeceia, outros dorme a sono solto, e, se acorda, é para esfregar os olhos e tornar a dormir; há, porém, os anos de vigília pura, em que não faz mais que entrar pelas casas alheias e obrigar a gente a dançar uma valsa triste, muitas vezes a última.

Desta vez pode ser, e é bom esperar que seja uma espécie de memento, para que as vítimas possíveis se acautelem do mal, indo vê-lo de longe. Também pode não passar disto, um caso em outubro, dois em novembro, três e quatro em outros meses, até acabar o verão. Querem, porém, alguns que, pouca ou muita, enquanto a tivermos em casa, não há relatórios que a matem. As mais hábeis comissões não lhe tiram a alma. Há quem lhe tenha ouvido dizer: — Podem citar para aí os autores que quiserem, combater ou apoiar as opiniões todas deste mundo e do outro, enquanto não passarem da biblioteca à rua e da palavra à ação, é o mesmo que se dormissem. Ora, a ação de entestar com o mal, atacá-lo e vencê-lo, por meio de um trabalho longo, constante, forte e sistemático, é tão comprida que faz doer o espírito antes de cansar o braço, e é preciso tê-los ambos de ferro. Se a agregada nossa confia nisso, é mister que perca a fé.

Nada do que fica aí é novo; a febre é velha, velhas as lástimas, velhíssimos os esforços para destruir o mal, e têm a mesma idade os adiamentos de tais esforços. Quando aqui apareceu o cólera, há muitos anos, — não por ocasião do ministro Mamoré, que o mandou embora, — falo da primeira vez, o destroço foi terrível, e a doença teria feito a lei da abolição por um o processo radical, se não fosse o judeu errante que é que não para nunca, e tão depressa entra como sai. A amarela é caseira, gosta de cômodos próprios e não exige que sejam limpos nem largos; a questão é que a deixem ficar. Uma vez que a deixem ficar, podem discuti-la, examiná-la, revirá-la, redigir relatórios sobre relatórios, oficiar, inquirir, citar; words, words, words, diz ela para também citar alguma coisa. E não saindo de Hamlet: “Se o sol pode fazer nascer bichos em cachorro morto”… Não serão cães mortos que lhe faltem. Quanto ao lençol de água, vê-lo-emos feito um formidável lençol de papel. Papers, papers, papers.

Os italianos não crêem no mal. Assim o dizem as estatísticas, em que eu, como acima confessei, piamente, acredito sem as freqüentar muito. Portugueses e alemães vem depois deles, muito abaixo, e ainda mais abaixo franceses, russos, belgas, ingleses e outros. Quem crê deveras na febre é o chim; no ano passado não entrou nenhum, dizem as estatísticas; mas por que notam elas esta ausência do chim, e não citam a do abexim? Eis aí um mistério, que não será o primeiro nem o último das estatísticas. Conquanto um artigo de folha genovesa diga que a colônia italiana acabará por absorver a nacionalidade brasileira, eu não dou fé a tais prognósticos; mas quando italianos nos absorvessem, seriam outros, não seriam já os mesmos. Há aí na praça um napolitano grave, influente, girando com capitais grossos, velho como os italianos velhos, que orçam todos pela dura velhice de Crispi e de Farani. Pois esse homem vi-o eu muita vez tocar realejo na rua, simples napolitano, recebendo no chapéu o que então se pagava, que era um reles vintém ou dois. Tinha eu sete para oito anos; façam a conta. Vão perguntar-lhe agora se quer ser outra coisa mais que brasileiro, se não da gema, ao menos da clara.

A propósito de realejo napolitano, li que em uma das levas de Genova para cá veio como agricultor um barítono. Ele, e um mestre de música; perguntando-se-lhes o que vinham fazer ao Brasil, parece que responderam ser este país grande e cá enriquecerem todos: “Por que não enriqueceremos nós?” concluíram. Não há que censurar. A voz pode levar tão longe como a manivela. Demais, a terra é de música e a música é de todas as artes aquela que mais nos fala à alma nacional. Um barítono, com boa voz e arte castigada, pode muito bem enriquecer, — ou, pelo menos, viver à larga. Tanto ou mais ainda um tenor e um soprano. Nem só de café vive o homem, mas também da palavra de Verdi e de Carlos Gomes.

Dado, porém, que vivamos só de café, e não devamos cuidar de mais nada que de cultivar esta preciosa rubiácea, ainda assim o barítono pode muito bem ser aceito e colocado. A fábula reza de Orfeu, que levava os animais com a simples lira que os gregos lhe deram. Por que não há de fazer a voz humana a mesma coisa às plantas? A semente lançada à terra escutará as melodias e porá o grelo de fora; com elas crescerá o talo, bracejarão as flores e abotoarão os grãos, que mais tarde havemos de exportar e de beber também.

Seja milagre, mas é natural que a terra de Carlos Gomes neste particular faz milagres. O Rio de Janeiro recebeu os restos do nosso maestro com as honras merecidas. S. Paulo vai guardá-lo como um dos mais célebres de seus filhos. O Pará, que o viu morrer, aqui o mandou, depois das mais vivas provas de que a unidade nacional existe.

Il Guarani, ópera de Carlos GomesAnteontem, fui ao arsenal de guerra ver sair o féretro do autor do Guarani e da Fosca, para ser conduzido à igreja de S. Francisco de Paula e ouvi a marcha fúnebre de Chopin que a banda militar tocava; não pude deixar de recordar os longos anos passados, quando o préstito era outro, e saía de outro lugar, — o teatro Provisório que lá vai — e descia pela rua da Constituição. Era de noite; o maestro tinha estreado, sem Itália nem Guarani mas eram tais as esperanças dadas, e tão jovens e ardentes éramos todos os que por ali íamos aclamando a estrela nascente. A música era a dos nossos peitos, podeis adivinhar se fúnebre ou festiva. Perguntai aos ecos da praça Tiradentes, — naquele tempo Constituição e vulgarmente Rocio Grande, — perguntai o que eles ouviram, e se são ecos fiéis dirão coisas belas e fortes. O meu querido Salvador que ia à testa da legião recordá-las-á com saudade, quando ler a notícia das honras últimas aqui dadas ao maestro de Campinas.

Realmente, a diferença foi grande; uma vida inteira enchia o espaço decorrido entre as duas datas, e as melodias de Gomes estavam agora na memória de todos. Muitos que as repetiam consigo não eram ainda nascidos por aquele tempo; os que eram moços, como esses são agora, viram branquear os cabelos e entraram no préstito com a alma igualmente encanecida; a evocação do pretérito os terá remoçado. Outros, enfim, nem moços nem velhos, ali não compareceram, por terem sido eliminados antes. Não falo dos que estão ainda em gérmen, e repetirão mais tarde as composições de Gomes. A matéria é ótima para uma dissertação longa; o lugar é que o não é, nem o dia.

Fiquemos aqui; ou antes, voltemos à Itália e aos seus cantores. Que venham, eles, barítonos e tenores, e nos trarão, além da música que este povo ama sobre todas as coisas, as próprias melodias do nosso maestro, e assim incluiremos um artigo no acordo que ela está celebrando com o governo brasileiro, porventura mais vivo e não disputado. Também ela amou a Carlos Gomes, não por patriotismo, que não era caso disso, mas por arte pura.

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Não tendo assistido a inauguração dos bonds elétricos, deixei de falar neles…

Gulliver e os Houyhnhnms
Gulliver encontra os Houyhnhnms, 1771, Sawrey Gilpin

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 16 de outubro de 1892, há exatos 116 anos.

Não tendo assistido a inauguração dos bonds elétricos, deixei de falar neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as impressões da nova tração e contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana. Anteontem, porém, indo pela Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar.

Para não mentir, direi o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de superioridade. Posto não fosse feio, não eram as prendas físicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade. Não é meu ofício censurar essas meias glórias, ou glórias de empréstimo, como lhe queiram chamar espíritos vadios. As glórias de empréstimo, se não valem tanto como as de plena propriedade, merecem sempre algumas mostras de simpatia. Para que arrancar um homem a essa agradável sensação? Que tenho para lhe dar em troca?

Em seguida, admirei a marcha serena do bond, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga. Mas, como íamos em sentido contrário, não tardou que nos perdêssemos de vista, dobrando ele para o Largo da Lapa e Rua do Passeio, e entrando eu na Rua do Catete. Nem por isso o perdi de memória. A gente do meu bond ia saindo aqui e ali, outra gente entrava adiante e eu pensava no bond elétrico. Assim fomos seguindo; até que, perto do fim da linha e já noite, éramos só três pessoas, o condutor, o cocheiro e eu. Os dois cochilavam, eu pensava.

De repente ouvi vozes estranhas, pareceu-me que eram os burros que conversavam, inclinei-me (ia no banco da frente); eram eles mesmos. Como eu conheço um pouco a língua dos Houyhnhnms, pelo que dela conta o famoso Gulliver, não me foi difícil apanhar o diálogo. Bem sei que cavalo não é burro; mas reconheci que a língua era a mesma. O burro fala menos, decerto; é talvez o trapista daquela grande divisão animal, mas fala. Fiquei inclinado e escutei:

— Tens e não tens razão, respondia o da direita ao da esquerda.

O da esquerda:

— Desde que a tração elétrica se estenda a todos os bonds, estamos livres, parece claro.

— Claro parece; mas entre parecer e ser, a diferença é grande. Tu não conheces a história da nossa espécie, colega; ignoras a vida dos burros desde o começo do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos homens nascido entre nós, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de Natal escapamos da pancadaria cristã. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte.

— Que tem isso com a liberdade?

— Vejo, redargüiu melancolicamente o burro da direita, vejo que há muito de homem nessa cabeça.

— Como assim? bradou o burro da esquerda estacando o passo.

O cocheiro, entre dois cochilos, juntou as rédeas e golpeou a parelha.

— Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando os bonds entraram nesta cidade, vieram com a regra de se não empregar chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde é que se viu burro andar sem chicote? Todos os burros desse tempo entoaram cânticos de alegria e abençoaram a idéia os trilhos, sobre os quais os carros deslizariam naturalmente. Não conheciam o homem.

—Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas pontas das rédeas. Sei também que, em certos casos, usa um galho de árvore ou uma vara de marmeleiro.

— Justamente. Aqui acho razão ao homem. Burro magro não tem força; mas, levando pancada, puxa. Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo gerente Shannon? Mandou isto: “Engorde os burros, dê-lhes de comer, muito capim, muito feno, traga-os fartos, para que eles se afeiçoem ao serviço; oportunamente mudaremos de política, all right!”

— Disso não me queixo eu. Sou de poucos comeres; e quando menos trabalho, quando estou repleto. Mas que tem capim com a nossa liberdade, depois do bond elétrico?

— O bond elétrico apenas nos fará mudar de senhor.

— De que modo?

— Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não somos já precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente às carroças.

— Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma aposentadoria? nenhum prêmio? nenhum sinal de gratificação? Oh! mas onde está a justiça deste mundo?

— Passaremos às carroças — continuou o outro pacificamente — onde a nossa vida será um pouco melhor; não que nos falte pancada, mas o dono de um só burro sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer coisa que nos torne incapaz, restituir-nos-á a liberdade…

— Enfim!

— Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que aí deixem crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva, que nem sempre é viçosa? Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-á matando, até que, para usar esta metáfora humana, — esticaremos a canela. Então teremos a liberdade de apodrecer. Ao fim de três, a vizinhança começa a notar que o burro cheira mal; conversação e queixumes. No quarto dia, um vizinho, mais atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pede uma reclamação. No quinto dia sai a reclamação impressa. No sexto dia, aparece um agente, verifica a exatidão da notícia; no sétimo, chega uma carroça, puxada por outro burro, e leva o cadáver.

Seguiu-se uma pausa.

— Tu és lúgubre, disse o burro da esquerda. Não conheces a língua da esperança.

— Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das espécies fracas, como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A nossa raça é essencialmente filosófica. Ao homem que anda sobre dois pés, e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da astronomia. Nós nunca seremos astrônomos. Mas a filosofia é nossa. Todas as tentativas humanas a este respeito são perfeitas quimeras. Cada século…

O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as rédeas, e travou o carro. Tínhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dois interlocutores. Não podia crer que fossem eles mesmos. Entretanto, o cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para levá-la ao outro lado do carro; aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre os dois burros:

Houyhnhnms!

Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção, levantaram as patas e perguntaram-me cheios de entusiasmo:

— Que homem és tu, que sabes a nossa língua?

Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou para mim, que lhe não espantasse os animais. Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora: —Onde está a justiça deste mundo?

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Entrou a estação eleitoral. Começa a florescência das circulares políticas…

Bailarinas atando as sapatilhas
Bailarinas atando as sapatilhas, 1893-1898, de Edgar Degas

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 15 de outubro de 1893, há exatos 115 anos.

Entrou a estação eleitoral. Começa a florescência das circulares políticas. Há climas em que este gênero de planta é mais decorativo que efetivo; as arengas aí valem mais. Entre nós, sem deixar de ser decorativa, a circular dispensa o discurso.

Realmente, ajuntarem-se trezentas, seiscentas, mil, duas, três, cinco mil pessoas para escutar durante duas horas o que pensa o Sr. X. de algumas questões públicas, não é negócio de fácil desempenho. Creio que vai nisso mais costume ou afetação que necessidade política. Vai também um tanto de astúcia. Os candidatos percebem naturalmente que homens juntos são mais aptos para aceitar uma banalidade do que absolutamente separados. Mais aptos, note-se, não nego que, dentro do próprio quarto, sem mulher, sem filhos, sem criados, sem retratos, sem sombra de gente, um homem tenha a aptidão precisa para aceitar uma idéia sem valor. A aptidão, porém, cresce com o número e a comunhão das pessoas.

A circular é outra coisa. A primeira vantagem da circular é não ser longa. Não pode ser longa; é cada vez mais curta, algumas são curtíssimas. A segunda vantagem é ir buscar o eleitor; não é o eleitor que vai ouvi-la da boca do candidato. Vede bem a diferença. Em vez de convidar-me a deixar a família, o sossego, o passeio, a palestra, a circular deixa-me digerir em paz o jantar e dormir. Na manhã seguinte, ao café, é que ela aparece, ou em forma de carta selada, ou simplesmente impressa nos jornais, o que é mais expedito e mais para se ler. É preciso não conhecer a natureza humana para não ver que há já em mim alguma simpatia para o homem que assim me comunica as suas idéias, no remanso do meu gabinete, pelo telefone de Gutenberg.

Agora mesmo acabo de ler a circular do Sr. Malvino Reis. É um documento interessante e prático. Tenho notado que o espírito acadêmico, o scholar, inclina-se particularmente à teoria, pronto em admitir uma idéia apenas indicada no livro de propaganda. O homem de outra origem e diversa profissão é essencialmente prático; vai ao necessário e ao possível. Não se deixa levar pela beleza de uma doutrina, muita vez inconsciente, muita vez oposta à realidade das coisas. Por exemplo, o Sr. Malvino Reis não apresenta programa político, e dá a razão desta lacuna: “No momento atual em que, infelizmente, nossa pátria se acha envolvida em uma comoção interna, que todos lastimamos e que todo o coração brasileiro acha-se enlutado, não é ocasião própria para a apresentação de programas políticos…”

A tese é discutível. Parece, ao contrário, que os programas políticos são sempre indispensáveis, uma vez que é por estes que o eleitor avalia a candidatura; mas é preciso ler para diante, a fim de apanhar todo o pensamento: “… programas políticos, que geralmente são alterados…” Aqui está o espírito prático. Explica-se a lacuna, porque os programas costumam ser alterados; não alterados ao sabor do capricho ou do interesse, mas segundo a hipótese formulada no final do período: “… alterados, quando assim o exige o bem público.” Não é usual esta franqueza; por isso mesmo é que esse documento político se destacará da grande maioria deles.

Outro ponto em que a circular confirma o meu juízo é o post-scriptum. Diz-se aí que “o 2° distrito é composto das freguesias de S. José, Sacramento, Santo Antônio, Sant’Ana. Espírito-Santo e S. Cristóvão.” Aparentemente é ocioso. Indo ao âmago, vê-se a necessidade, e descobre-se quanto o candidato conhece o eleitor. O eleitor é, em grande parte, distraído, indolente e um pouco ignorante. Pode saber a que freguesia pertence, mas, em geral, não suspeita do seu distrito. Daí o memento final. É prático. Outros cuidariam mais da linguagem; melhor é curar do que interessa ao voto e seus efeitos.

Não me acusem de parcialidade, nem de estar a recomendar um nome. Não conheço nomes, emprego-os porque é um modo de distinguir os homens. Um ponto há em que a circular do Sr. Malvino Reis combina com as do Sr. Ribeiro de Almeida e Dr. Alves da Silva, candidatos pelo 7° distrito de Minas: é a economia dos dinheiros públicos. Nunca leio esta frase que me não lembre de um ministério de 186…, cujo programa, exposto pelo respectivo chefe, consistia em duas coisas: a economia dos dinheiros públicos e a execução das leis. Eis aí um credo universal, um templo único. Eu, se estivesse então na câmara, qualquer que fosse o meu programa político, alterava-o com certeza. Assim o exigia o bem público.

Não pus o ano exato do ministério, por me não lembrar dele, não por esconder a minha idade. Assim também, — entre parêntesis, — se na crônica passada disse conhecer o finado Garnier, há vinte anos, a culpa não foi minha, nem da composição, nem da revisão, mas desta letra do diabo. Trinta anos é que devia ter saído. Mas que querem? Também a letra envelhece. A minha, quando moça, não era bonita, mas fazia-se entender melhor. Há dias dei com um antigo bilhete de José Telha. Que corte de letra, Deus dos exércitos! era um regimento de soldados, mais ou menos bem alinhados, marchando com regularidade, a tempo. Hoje é uma turba de recrutas. Entretanto, José Telha não é velho; mas, se há pessoas que precedem a letra, como o Sr. senador Cristiano Otoni, cuja escrita de octogenário tem a virilidade antiga, letras há que precedem a pessoa; é o caso de José Telha. Em qual das classes estarei eu? retournons à nos moutons.

Estes carneiros eram, se bem me lembro, a execução das leis e a economia dos dinheiros públicos.

Seria injustiça dizer que os dois candidatos do 7º distrito de Minas limitam à economia o seu programa. Há mais que ela. Uma das circulares, posto tenha apenas dez linhas, encerra quatro idéias. Não são novas, mas são idéias. A outra é menos curta, mas pouco mais tem do dobro. Entre os artigos do programa desta, figura a liberdade religiosa, que não parece bastante ao candidato, uma vez que o casamento civil é obrigatório; quer torná-lo facultativo. A circular fala também da necessidade de medidas que fixem o trabalhador nas fazendas. Pela minha parte, não vejo nada tão eficaz como o contrato da antiga câmara municipal com um empresário da numeração de casas, legalizado por uma postura. Muda-se o número de uma casa, põe-se-lhe placa nova, e o morador recebe um aviso impresso desse benefício, no qual se lhe diz que vá pagar o preço à rua (creio que Nova do Ouvidor) sob pena de cadeia.

Quanto às outras partes do programa da circular… Mas aonde vou eu neste andar administrativo e político? Musa da crônica, musa vária e leve, sacode essas grossas botas eleitorais, calça os sapatinhos de cetim, e dança, dança na pontinha dos pés, como as bailarinas de teatro; gira, salta, deixa-te cair de alto, com todas as tuas escumilhas e pernas postiças. Antes postiças que nenhumas.

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Um cabograma… Por que não adotaríamos esta palavra?

CabogramaUm cabograma… Por que não adotaríamos esta palavra?

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 14 de outubro de 1894, há exatos 114 anos.

Um cabograma… Por que não adotaremos esta palavra? A rigor não preciso dela; para transmitir as poucas notícias que tenho, basta-me o velho telegrama. Mas as necessidades gerais crescem, e a alteração da cousa traz naturalmente a alteração do nome. Vede o homem que vai na frente do bond elétrico. Tendo a seu cargo o motor, deixou de ser cocheiro, como os que regem bestas, e chamamos-lhe motorneiro em vez de motoreiro, por uma razão de eufonia. Há quem diga que o próprio nome de cocheiro não cabe aos outros, mas é ir longe de mais, e em matéria de língua, quem quer tudo muito explicado, arrisca-se a não explicar nada.

Custa muito passar adiante, sem dizer alguma coisa das últimas interrupções elétricas; mas se eu não falei da morte do mocinho grego, vendedor de balas, que o bond elétrico mandou para o outro mundo, há duas semanas, não é justo que fale dos terríveis sustos de quinta-feira passada. O pobre moço grego se tivesse nascido antigamente, e entrasse nos jogos olímpicos, escapava ao desastre do largo do Machado. Dado que fosse um dia destruído pelos cavalos, como o jovem Hipólito, teria cantores célebres, em vez de expirar obscuramente no hospital, tão obscuramente que eu próprio, que lhe decorara o nome, já o esqueci.

Mas, como ia dizendo, um cabograma ou telegrama, à escolha, deu-nos notícia de haver falecido o célebre humorista americano Holmes. Não é matéria para crônica. Se os mortos vão depressa, mais depressa vão os mortos de terras alongadas, e para a minha conversação dominical tanto importam célebres como obscuros. Holmes, entretanto, escreveu em um de seus livros, o Autocrata à meta do almoço, este pensamento de natureza social e política: “O cavalo de corrida não é instituição republicana; o cavalo de trote é que o é “. Tal é o seu bilhete de entrada na minha crônica. Aprofundemos este pensamento.

Antes de tudo, notemos que ao nosso Conselho Municipal, por inexplicável coincidência, foi apresentado esta mesma semana um projeto de resolução, cujo texto, se fosse claro, poderia corresponder ao pensamento de Holmes; mas, conquanto aí se fale em corridas a cavalo, não estando estas palavras ligadas às outras por ordem natural e lógica, antes confusamente, não têm sentido certo, nada se podendo concluir com segurança. A verdade, porém, é que o conselho trata de combater por vários modos, não sei se sempre adequados, mas de coração, as múltiplas formas do jogo público. Um dos seus projetos, redigido em 1893, e revivido agora pelo próprio autor, que vai longe neste particular que não se contenta de proibir a venda dos bilhetes de loteria nas ruas, chega a proibi-la expressamente. “É expressamente proibido vendê-los nas rua e praças, etc.” diz o art. 2.° — Expressamente — não há por onde fugir.

Indo ao pensamento de Holmes, descubro que a melhor maneira de penetrá-lo é tão somente lê-lo. Que o leitor o leia; penetre bem o sentido daquelas palavras, não lhe sendo preciso mais que paciência e tempo; eu não tenho pressa, e aqui o espero, com a pena na mão. Talvez haja alguma exageração quando o ilustre americano compara o cavalo de corrida às mesas de roleta, — roulette tables; mas quando, assim considerado, o apropria a duas fases sociais, definidas por ele com grande agudeza, não parece que exagero muito. Em compensação, a pintura do cavalo de trote, puxando o ônibus, o carro do padeiro e outros veículos úteis, basta que seja tão útil como os veículos, para que a devamos ter ante os olhos, de preferência a outros emblemas.

Não tenho pressa. Enquanto meditas e eu espero, Artur Napoleão conclui o hino que vai ser oferecido ao Estado do Espírito Santo por um de seus filhos. Sobre isto ouvi duas opiniões contrárias. Uma dizia que não achava boa a oferta.

— Não o digo por desfazer na obra, que não conheço, nem na intenção, que é filial, menos ainda no Estado, que a merece. Eu preferia mandar comprar um exemplar único da Constituição Federal, impresso em pergaminho, encadernado em couro ou em ouro. Ou então uma carta profética do Brasil, — o Brasil um século depois. Também podia ser um grande álbum em que os chefes de todos os Estados brasileiros escrevessem algumas palavras de solidariedade e concórdia, qualquer cousa que pudesse meter cada vez mais fundo na alma dos nossos patrícios do Espírito Santo o sentimento da unidade nacional… Um hino parece levar idéias de particularismo…

— Discordo, respondeu a outra opinião, pela boca de um homem magro, que ia na ponta do banco, porque esta conversação era no bond, ontem de manhã, em viagem para o Jardim Botânico.

— Discorda?

— Sim, não acho inconveniente o hino, e tanto melhor se cada Estado tiver o seu hino particular. As flores que compõem um ramalhete, Sr. Demétrio, podem conservar as cores e formas próprias, uma vez que o ramilhete esteja bem unido e fortemente apertado. A grande unidade faz-se de pequenas unidades…

A conversação foi andando assim, talhada em aforismos, enquanto eu descia do bond, metia-me em outro e tornava atrás. Os animais, apesar de serem de trote, ignoravam este outro aforismo – time is money — ou por não saberem inglês, ou por não saberem capim. Tinha chuviscado, mas o chuvisco cessou, ficando o ar sombrio e meio fresco. Apesar disso, ou por isso, trago uma dor de cabeça enfadonha que me obriga a parar aqui.

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Estudemos; é o melhor conselho que posso dar ao leitor amigo; estudemos…

A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632, de Rembrandt
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632, de Rembrandt

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 13 de outubro de 1895, há exatos 113 anos.

Estudemos; é o melhor conselho que posso dar ao leitor amigo; estudemos. É domingo; não tens que ir ao trabalho. Já ouviste a tua missa, apostaste na vaca (antigo) e almoçaste entre a esposa e os pequenos. Em vez de perder o tempo em alguma leitura frívola, estudemos.

Temos duas lições e podíamos ter sete ou oito; mas eu não sou professor que empanzine a estudantes de boa vontade. Demais, há lições tão obvias que não vale a pena encher delas um parágrafo. Por exemplo, a declaração que fez o Sr. deputado Érico Coelho, esta semana, ao apresentar o projeto do monopólio do café. Declarou S. Ex., incidentemente, que já na véspera fora solicitado para, no caso de passar o monopólio, arranjar alguns empregos. Os deputados riram, mas deviam chorar, pois naturalmente não lhes acontece outra coisa com ou sem projetos.

A confissão do Sr. Érico Coelho faz lembrar o que sucedeu com Lamartine, chefe do governo revolucionário de 1848. Um cozinheiro foi empenhar-se com um deputado para empregá-lo em casa de Lamartine, “presidente da República”, disse o homem. — “Mas ele ainda não é presidente”, observou o deputado. Ao que retorquiu o cozinheiro que, se ainda não era, havia de se-lo, e devia ir já tratando da cozinha. Cozinheiros do monopólio de café, se advertísseis que Lamartine não foi eleito, mas outro, consideraríeis que o mesmo pode suceder ao monopólio de café. Quando não seja o mesmo, e a lei passe, é provável que passe daqui a um ou dois anos. Uma lei destas pede longos estudos, longos cálculos, longas estatísticas. O melhor é continuardes a cozinha das casas particulares.

A primeira das nossas duas lições refere-se não propriamente ao italiano que trepou à estátua de Pedro I e lá de cima arengou ao povo, mas às circunstâncias do caso. Ninguém sabe o que ele disse, por falar na língua materna, e nós só entendemos italiano por musica. O que sabemos, nos que lemos a notícia, é que, apesar da hora (dez e meia da noite) mais de quatrocentas pessoas se ajuntaram logo na praça Tiradentes, e intimaram ao homem que descesse. A ele acontecia-lhe o mesmo que aos de baixo; não entendia a língua. Vários planos surdiram para fazei-o desmontar o cavalo, — pedradas, um tiro, o corpo de bombeiros, mas nenhum foi adotado, e o tempo ia passando. Afinal um sargento do exercito e uma praça de polícia treparam à estatua, e, sem violência, com boas maneiras e muitas cautelas, desceram o pobre doido.

Ora, enquanto ocorria tudo isto, e as idéias voavam de todos os lados, alguns propuseram o alvitre de linchar o homem; e, com efeito, tão depressa ele pousou no chão, ergueram-se brados no sentido daquele julgamento sumário e definitivo. Outros, porém, opuseram-se, e o projeto não teve piores conseqüências.

Este é o ponto da lição. Aqui temos um grupo de pessoas, todas as quais, particularmente, repeliriam com horror a idéia de linchar a alguém, antes defenderiam a vítima. Juntas, porém, estavam dispostas a linchar o homem da estátua. Que o contágio da idéia é que produzia esse acordo de tantos, é coisa natural e sabida. Aquilo que não nasce em trinta cabeças separadas, brota em todas elas, uma vez reunidas, conforme a ocasião e as circunstâncias. Motivos diversos sem excluir o sentimento da justiça e a indignação do bem, podem dar azo a ações dessas, coletivas e sangrentas. Começo a distrair no sermão. Vamos à questão principal.

A principal questão, no caso da estátua, é o abismo entre o ato e a pena. O homem não tinha cometido nenhum crime público nem particular. Subiu ao cavalo de bronze, no que fez muito mal, devia respeitar o monumento; mas, enfim, não era delito de sangue que pedisse sangue. A probabilidade de ser doido podia não acudir a todos os espíritos, excitados pelo atrevimento do sujeito; se pudesse acudir, todos rogariam antes ao céu que ele fosse descido sem quebrar os ossos, a fim de que, recolhido novamente ao Hospício dos Alienados, recebesse segunda cura, tendo saído de lá curado, três ou quatro dias antes.

Esse contraste é que merece particular atenção. A familiaridade com a morte é bela, nos grandes momentos, e pode ser grandiosa, além de necessária. Mas, aplicada aos eventos miúdos, perde a graça natural e o poder cívico, para se converter em derivação de maus humores. É reviver a prática dos médicos de outro tempo, que a tudo aplicavam sanguessugas e sangrias. Quem nunca esteve com o braço estendido, à espera que as bichas caíssem de fartas, e não viu esguichá-las ali mesmo para lhes tirar o sangue que acabavam de sugar, não sabe o que era a medicina velha. Não havia que dizer, se era necessária; mas o uso vulgarizou-se tanto que o mau médico antes de atinar com a doença, mandava ao enfermo esse viático aborrecido. Às vezes, o mal era um defluxo. Que é a loucura senão uma supressão da transpiração do espírito?

A segunda lição que devemos ou deves estudar é a que se segue.

Um gatuno furtou diversas jóias e quatrocentos mil réis. O Sr. Noêmio da Silveira, delegado da 7. circunscrição urbana, moço inteligente e atilado, descobriu o gatuno e o furto. Até aqui tudo é banal. O que não é banal, o que nos abre uma larga janela sobre a alma humana, o que nos põe diante de um fenômeno de alta psicologia, é que o gatuno tão depressa furtou os quatrocentos mil réis como os foi depositar na caixa econômica. Medita bem, não me leias como os que tem pressa de ir apanhar o bond; lê e reflete. Como é que a mesma consciência pode simultaneamente negar e afirmar a propriedade? Roubar e gastar está bem; mas pegar do roubo e ir levai-o aonde os homens de ordem, os pais de família, as senhoras trabalhadeiras levam os saldos do salário e os lucros adventícios, eis aí o que me parece extraordinário. Não me digas que há viciosas que também vão à caixa econômica, nem que os bancos recebem dinheiros duvidosos. Ofício é ofício, e eu trato aqui do puro furto.

Assim é que, o empregado da caixa, vendo esse homem ir frequentemente levar uma quantia, adquire a certeza de ser pessoa honesta e poupada, e quando for para o céu, e o vir lá chegar depois, testemunhará em favor dele ante S. Pedro. Ao contrário, se lá estiver algum dos seus roubados, dirá que é um simples ratoneiro. O porteiro do céu, que negou três vezes a Cristo e mil vezes se arrependeu, concluirá que, se o. homem negou a propriedade por um lado, afirmou-a por outro, o que equivale a um arrependimento, e metê-lo-á onde estivessem as Madalenas de ambos os sexos.

Se eu houvesse de definir a alma humana, em vista da dupla operação a que aludo, diria que ela é uma casa de pensão. Cada quarto abriga um vício ou uma virtude. Os bons são aqueles em que os vícios dormem sempre e as virtudes velam e os maus… Adivinhaste o resto; poupas-me o trabalho de concluir a lição.

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Czarina, se estas linhas chegarem às tuas mãos, não faças como Victor Hugo…

o escritor de folhetins
Os olhos “de ressaca” da czarina Alexandra Feodorovna

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1896, há exatos 112 anos.

Czarina, se estas linhas chegarem às tuas mãos, não faças como Victor Hugo, que, recebendo um folheto de Lisboa, respondeu ao autor: “Não sei português, mas com o auxílio do latim e do espanhol, vou lendo o vosso livro…” Não, nem peço que me respondas. Manda traduzi-las na língua de Gogol, que dizem ser tão rica e tão sonora, e em seguida lê. Verás que o beijo que te depositou na mão, em Cherburgo, o presidente da República Francesa, foi aqui objeto de algum debate.

Uns acharam que, para republicano, o ato foi vilania; outros que, para francês, foi galantaria. Uma princesa! Uma senhora! E daí uma conversação longa em que se disseram coisas agressivas e defensivas. Eu, pouco dado a rusgas, limitei-me a pensar comigo que a galantaria não deve ficar sendo um costume somente das cortes. A democracia pode muito bem acomodar-se com a graça; nem consta que Lafayette, marquês do antigo regímen, tivesse deitado a cortesia ao mar quando foi colaborar com Washington.

Olha, czarina, houve tempo em que nessa mesma França, cujo chefe te beijou agora a mão, se fazia grande cabedal de tratar por tu aos outros, para continuar Robespierre e os seus terríveis companheiros. Então um poeta falou em verso, como é uso deles, e concluiu por este, que faz casar a política e as maneiras: Appellons-nous MONSIEUR et soyons CITOYEN. Nós, para não ir mais longe, fizemos a República, sem deportar a excelência das Câmaras. Era costume antigo, não do regímen deposto, mas da sociedade. A excelência veio da mãe-pátria, onde parece que se generalizou ainda mais, não se tratando lá ninguém por outra maneira. Aqui, quando ainda não há familiaridade bastante para o tu e o você, e já a excelência é demasiado cerimoniosa, ficamos no senhor, é um modo indireto; em Portugal, nos casos, apertados, empregam o amigo, que é ainda mais indireto. Tudo para fugir aos vós dos nossos maiores, e que entre nós é a fórmula oficial da correspondência escrita. Em verdade, se o regimento das nossas câmaras tivesse obrigado o tratamento de vós na tribuna, como na correspondência oficial, antes de infringirmos o regimento, teríamos infringido a gramática. É duro de meter na oração a flexão vos do pronome. Tenho visto casos em que a pessoa para desfazer-se logo dela, começa por ela: Vos declaro, Vos comunico, Vos peço. Nem é por outra razão, czarina, que eu te trato por tu, como se faz em poesia.

Voltando ao beijo, admito que há coisas que só podem ser bem entendidas no próprio lugar. Julgadas de longe levam muita vez ao erro. Tu, por exemplo, se lesses a moção da Câmara Municipal do Rio Claro, São Paulo, protestando contra o presidente do Estado, que não a recebeu quando ele ali foi ver a mãe enferma, pode ser que a entendesses mal. A moção aceitou o ato como uma injúria ofensiva e direta ao município, ao povo, a todo o partido republicano, e mandou publicar o protesto e comunicá-lo por cópia a todas as Câmaras Municipais do Estado, ao presidente da República, aos presidentes dos congressos federal e estadual e ao diretório central do partido.

Aparentemente é uma tempestade num copo d’água; mas a moção alega que há da parte do presidente contra o município sentimento de hostilidade já muitas vezes manifestado. Assim sendo, explica-se a recusa do presidente em recebê-la, mas não se explica o ato da Câmara em visitá-lo. Não se devem fazer visitas a desafetos; o menos que acontece é não achá-los em casa. Quando, porém, a Câmara, esquecendo ressentimentos legítimos, quisesse levar o ramo de oliveira ao chefe do Estado, em benefício comum, se esse não aceitasse as pazes, o melhor seria calar e sair. A divulgação do caso à cidade e ao mundo e a ameaça de pronta repulsa faz recear um estado de guerra, quando todos os municípios desejam concórdia a sossego. Há já tantas questões graves, sem contar econômica e a financeira, que a questão do Rio Claro bem podia não ter nascido, ou ficar no “tapete da discussão” como se usa no parlamento.

Disse que entenderias mal a moção; emendo-me, não entenderias absolutamente, pois nunca jamais uma Câmara Municipal russa falaria daquele modo. A Câmara do Rio Claro, se fosse moscovita, ou voltaria a visitar o czar, quando ele estivesse em casa, ou far-se-ia niilista. Donde podes concluir a vantagem das moções, e a razão do uso imoderado que fazemos delas: é uma válvula. Enquanto a gente propõe moções não trama conspirações, e estas duas palavras que rimam no papel não rimam na política.

O que é curioso é que nós, que não fazemos política, estejamos ocupados, eu em falar dela, tu em ouvi-la. O melhor é acabar e dizer-te adeus. Adeus, czarina; se cá vieres um dia de visita, pode ser que não aches as ruas limpas, mas os corações estarão limpíssimos. O presidente da República, se não for algum dos que censuraram agora o Sr. Faure, beijar-te-á a mão, sem perder o aprumo da liberdade. A Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico oferecer-te-á um bond especial para percorreres as suas linhas, com as tuas damas e escudeiros. Esta companhia completou anteontem vinte e oito anos de existência. Ainda me recordo da experiência dos carros na véspera da inauguração. Ninguém vira nunca semelhantes veículos. Toda gente correu a eles, e a linha, aberta até o Largo do Machado, continuou apressadamente aos seus limites. Nos primeiros dias os carros eram fechados; apareceram abertos para os fumantes, mas dentro de pouco estavam estes sós em campo; as senhoras preferiram ir entre dois charutos, a ir cara a cara com pessoas que não fumassem. Outras companhias vieram a servir outros bairros. Ônibus e diligências foram aposentados nas cocheiras e vendidos para o fogo. Que mudança em vinte e oito anos!

Uma coisa não entenderás, ainda que a transfiram à língua de Gogol, são os dois avisos postos pela Companhia do Jardim Botânico em um ou mais dos seus carros. Também eu não as entendi logo; mas, por obtuso que um homem seja, desde que teime, decifra as mais escuras charadas deste mundo. Por que não sucederá o mesmo a uma senhora? Manda traduzir já e vê.

O primeiro aviso é este: A assinatura evita o engano nos trocos. Compreende-se logo que a assinatura é a dos bilhetes de passagem. Quer dizer que, comprando-se uma coleção de bilhetes, em vez de pagar com dinheiro cada vez que se entra no carro, não se perde nada nos trocos que dão os condutores; logo, os condutores enganam-se; logo, há um melhor meio que reprimir os condutores ou despedi-los, como se faz nas casas comerciais e nos bancos, é vender coleções de bilhetes impressos. Nem se tira o pão a distraídos, nem se alivia o triste passageiro de uma parte do bilhete de dez ou mais tostões.

O segundo aviso é uma pequena alteração do primeiro, e diz assim: A assinatura evita o esquecimento nos trocos. Se aqui vem esquecimento em vez de engano, é que o passageiro em muitos casos perde o dinheiro, não já em parte, mas totalmente, por aquela outra causa mais grave. Não só o esquecimento é provável, mas até pode ser certo e constante, se o condutor padecer de moléstia que oblitere a memória, e não há meio de evitar que este fique com o resto do dinheiro senão oferecendo a companhia os seus bilhetes de assinatura. Outrossim, o passageiro passa a ser o melhor fiscal da companhia, e o seu ordenado é que deixa de ficar, por engano ou esquecimento, na algibeira do condutor. Tais me parecem ser os dois avisos; mas, se me disserem que eles contêm uma profecia relativa aos destinos da Turquia, não recuso a explicação. Tudo é possível em matéria de epigrafia. Adeus, czarina!

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