Arquivo da tag: Lamartine

O Rio de Janeiro está em festas — festas realizadas anteontem e festas adiadas para 24 e 25. O casamento da herdeira da coroa é o assunto do momento…

Princesa Isabel, Conde D'Eu e familia
D. Pedro II e família em Petrópolis, foto de Otto Hees

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 1864, há exatos 144 anos.

O Rio de Janeiro está em festas — festas realizadas anteontem e festas adiadas para 24 e 25. O casamento da herdeira da coroa é o assunto do momento.

Um céu puro e um sol esplêndido presidiram no dia 15 a este acontecimento nacional. A natureza dava a mão aos homens; o céu comungava com a terra.

Não descreverei nem a festa oficial nem a festa pública. Quem não assistiu à primeira leu já a relação dela nos andares superiores dos jornais; na segunda todos tomaram parte — mais ou menos — todos viram o que se fez, em arcos, coretos, pavilhões, iluminações, espetáculos, aclamações e mil outras coisas. E sobretudo ninguém deixou de ver e sentir a melhor festa, que é a festa da alegria íntima, natural, espontânea, a festa do cordial respeito que o povo tributa à primeira família da nação.

Uma das coisas que fez mais efeito nesta solenidade foi a extrema simplicidade com que trajava a noiva imperial. É impossível desconhecer o delicado pensamento que a este fato presidiu, na idade e na condição de Sua Alteza: as suas graças naturais, as virtudes do coração e o amor deste país, são o seu melhor diadema e a suas jóias mais custosas.

As festas celebradas anteontem, e que deviam continuar hoje, foram adiadas para 24 e 25, época em que devem os augustos consortes voltar de Petrópolis. Até lá o Rio de Janeiro apresentará o aspecto da mais completa desolação?

Refiro-me ao temporal, a esse temporal único, assombroso, aterrador, que os velhos de oitenta anos viram pela primeira vez, que os adolescentes de quinze anos esperam não ver segunda vez no resto dos seus dias, a esse temporal, que, se durasse 2 horas, deixava a nossa cidade reduzida a um montão de ruínas.

Durante uns dez minutos tivemos, nós, os fluminenses, uma imagem do que seria o grande cataclismo que extinguiu os primeiros homens. Rompeu-se uma catarata do céu; Éolo soltou os seus tufões; o trovão rolou pelo espaço; e um dilúvio de pedras enormes começou a cair sobre a cidade com a violência mais aterradora que se tem visto.

Seria o látego com que a divindade nos castigava? O mesmo temporal tinha-se dado em São Paulo poucos dias antes; dar-se-á caso que tenhamos de vê-lo repetido em todas as cidades do mundo? Se assim for, não há dúvida de que são chegados os tempos; os tufões são, portanto, os batedores do cometa Newmager, com que me ocupei num dos meus primeiros folhetins.

Os leitores estarão lembrados do que eu disse nessa ocasião, aceitando o cometa como um castigo do céu. Apesar de já descrer até dos cometas, não pude recusar a este o testemunho da minha fé. Eu lastimei então que um anúncio feito tão tarde não pudesse fornecer aos homens o meio de conjurar o cataclismo, cessando a transmissão dos seus vícios e dos seus defeitos às gerações que se lhes seguissem, embora continuassem eles a ser hipócritas, velhacos, ingratos, difamadores, egoístas, vaidosos, ridículos.

Se acreditava, porém, no cometa, ainda assim não deixava de nutrir certa esperança. Essa esperança começa a desvanecer-se diante dos prenúncios que vão aparecendo.

A proximidade do Átila celeste revoluciona o espaço; não há dúvida que o tufão que começa a varrer a face da terra é a respiração do monstro. E, a julgar pela violência, o monstro está próximo.

Não repetirei aqui o trocadilho que toda a gente repetiu durante a semana — até o Cruzeiro do Brasil — o trocadilho da quebra dos banqueiros e da quebra das vidraças. Mas se falo em vidraças é só para dar um conselho aos vidraceiros. Foram estes os únicos que aproveitaram com o temporal. Há cerca de duzentos mil vidros quebrados no Rio de Janeiro; os vidraceiros aproveitaram a ocasião e declaram-se os soberanos reparadores dos males da cidade. Em conseqüência, altearam os preços.

Os vidraceiros desconhecem os seus próprios interesses. Baixar os preços era a única medida da ocasião, por isso que, havendo trabalho em abundância, convinha assegurar esse trabalho pela perspectiva da modicidade do custo. Mas, como a operação de encher vidraças não requer estudos preliminares de lógica, os vidraceiros podem facilmente abster-se de raciocinar, e o resultado é cometerem um erro, quando podiam exercer duas virtudes: — primeira, socorrer facilmente aos males públicos; a segunda, fazer no orçamento dos seus ganhos um aumento de verba.

Demais — e é isto o importante — os proprietários, receosos do cataclismo de 1865,quererão acaso envidraçar as suas casas para ver perdidos, dentro de pouco tempo, o dinheiro e o trabalho? Eu acho que não, e nesse caso, se é difícil reparar os estragos do temporal do dia 10, com os preços ínfimos, sê-lo-á muito mais, com os preços alteados.

Ofereço estas reflexões à corporação dos vidraceiros da capital.

Se é verdade que o cometa deve aparecer e se as revoluções da atmosfera são sintomas da presença do Átila celeste, é para admirar — mais do que em circunstâncias ordinárias — o ato que a população fluminense apreciou no sábado: a ascensão do aeronauta Wells.

Pois que, ousado mortal! quando um habitante do espaço ameaça visitar a terra, quando os teus semelhantes tremem de pavor só a essa idéia, ousas tu — de alma alegre e coração à larga — invadir os domínios aéreos, afrontar o dito habitante no seio da sua própria casa?

Esta arrojada visita aérea — que é bastante para despertar a idéia de represálias — foi executada no sábado, como se sabe, às 11 horas da manhã.

O dia estava magnífico; o céu azul, o ar puríssimo. Tudo convidava o Sr. Wells a realizar as suas promessas. O campo de Sant’Anna regurgitava de povo que correu a ver aquele espetáculo duplamente curioso: — primeiro, por ser arrojado; depois, por ser gratuito.

O balão subiu no meio de aclamações.

Não era o primeiro espetáculo deste gênero efetuado na capital, mas é sempre digno de ser visto e apreciado.

Pouco tempo depois o Sr. Wells descia sobre o morro da Viúva, calmo e tranqüilo, como quem volta para casa, depois de um passeio higiênico.

Anuncia-se nova ascensão para o dia 24.

Então pretende o Sr. Wells admitir alguns amadores. Vou já avisando aos corajosos da capital; dizem que na próxima ascensão irá com o Sr. Wells uma americana. É vergonhoso que o exemplo de uma mulher não seduza a muitos homens, tanto mais que neste caso há dois balões, em vez de um, o que torna mais efetiva a segurança.

Completem os leitores mentalmente as muitas páginas que eu podia escrever neste assunto e a propósito da última ascensão.

A conquista do ar! Quem é que não se sente tomar de entusiasmo frente esta nova aplicação dos conhecimentos humanos? Enquanto os leitores deixam assim correr a imaginação pelo ar, o folhetinista atravessa os mares e vai ver em longes terras da Europa um poeta e um livro.

Cantos fúnebres é o novo livro do Sr. Dr. Gonçalves de Magalhães. Não é completamente um livro novo; uma parte das poesias estão já publicadas. Compõe-se dos Mistérios (cantos à morte dos filhos do poeta), algumas nênias à morte de amigos, vários poemas e uma tradução da Morte de Sócrates, de Lamartine.

O autor dos Cantos fúnebres ocupa um lugar eminente na poesia nacional. O voto esclarecido dos julgadores já lh’o reconheceu, a sua nomeada é das mais legítimas.

Quando os Mistérios apareceram em volume separado, o público brasileiro aceitou e leu esse livrinho, assinado pelo nome já venerado do eminente poeta, com verdadeiro respeito e admiração.

O sucesso dos Mistérios foi merecido; nunca o autor dos Suspiros poéticos tinha realizado tão brilhante a união da poesia e da filosofia: ao pé de três túmulos, sufocado pelas próprias lágrimas, o poeta pôde mais facilmente casar essas duas potências da alma. A elevação do sentido e a melancólica harmonia do verso eram dignas do assunto.

Tão superior é o merecimento dos Mistérios que agora mesmo, no meio de um livro de trezentas e tantas páginas, eles ocupam o primeiro lugar e se avantajam em muito ao resto da obra.

Não li toda a tradução da Morte de Sócrates, nem a comparei ao original; mas as páginas que cheguei a ler pareceram-me dignas do poema de Lamartine. O próprio tradutor declara que empregou imenso cuidado em conservar a frescura original e os toques ligeiros e transparentes do poema. Essa devia ser, sem dúvida, uma grande parte da tarefa; para traduzir Lamartine é precioso saber suspirar versos como ele. As poucas páginas que li dizem-me que os esforços do poeta não foram vãos.

Os Cantos fúnebres encontrarão da parte do público brasileiro o acolhimento a que têm direito. Tanto mais devem procurar o novo livro quanto este volume é o 6° da coleção das obras completas do poeta, que o Sr. Garnier vai editar.

O volume que tenho à vista é nitidamente impresso. A impressão é feita em Viena, aos olhos do autor, garantia para que nenhum erro possa escapar; sendo esta a edição definitiva das obras do poeta, é essencial que ela venha limpa de erros.

Um bom livro, uma bela edição — que mais pode desejar o leitor exigente?

Passemos ao teatro.

O Ginásio representou na sexta-feira uma nova peça, — Montjoye, em 5 atos e 6 quadros, por Octavio Feuillet.

Montjoye teve um grande triunfo em Paris. Crítica e platéia se juntaram para coroar a nova composição do autor da Dalila e doRomance de um moço pobre. Ora, a nova composição era a primeira em que O. Feuillet deixava a esfera fantástica e ideal de Maximo Odiot e de André Roswein, para pisar a terra chã da vida real e dos costumes burgueses. O poeta cortava as asas para envergar o paletó.

Mas, ninguém melhor que o autor da Dalila podia cometer essa empresa. Descendo à vida prática, ele trazia consigo as chaves de ouro com que abria as portas da fantasia; soube penetrar na realidade sem tomar a natureza dela: tinha palheta e tintas, desdenhou a máquina e o colódio. Em resumo, não submeteu a musa às exigências de uma realidade estéril; sujeitou a realidade às mãos instruídas da musa. É o que se conhece vendo a nova peça do autor da Dalila.

Même quand l’oiseau marche on voit qu’il a des ailes.

O tipo de Montjoye está reproduzido com habilidade de mestre. Montjoye é o homem prático, o homem utilitário, o homem forte. Todos os bons sentimentos, todas as ilusões da mocidade, são para ele inúteis quimeras; indicai-lhe a melhor aptidão, adornada por essas ilusões, cheia desses sentimentos, ela nada valerá para ele; mostrai-lhe, pelo contrário, a inteligência esperançosa, mas nua desses sentimentos e dessas ilusões, mostrai-lhe Gendrin, e ele dará um suspiro de lamentação, quando lhe vieram dizer que o pobre rapaz morreu em Xangai.

Momo, consultado por Júpiter sobre a organização do homem, notou um defeito: o de não ter ele uma janela no coração por onde todos lhe vissem os sentimentos. Se Deus consultasse Montjoye no mesmo assunto, este criticaria a própria existência do coração e aconselharia a supressão dele.

Montjoye só conhece uma utilidade nos sentimentos dos outros homens: é a de lhe servir aos fins que ele tenha em vista.

Aproveitará a fibra humanitária de Saladin para preparar a candidatura à câmara dos deputados; dará plena sanção ao amor de Cecília, uma vez que o próximo casamento quebre nas mãos do adversário político uma arma eleitoral.

Ele próprio faz a sua profissão de fé; só acredita em duas coisas; em moral, o meu é o teu, — em filosofia, dois e dois são quatro. Fora daí — há o vácuo.

Assim estudado, o tipo de Montjoye mostra-se, desenvolve-se, afirma-se de ato para ato. Um dia, já separado dos seus, Montjoye sente que lhe falta alguma coisa; não é ainda o sentimento da saudade e do amor; é puramente o gosto do hábito; Montjoye não estima esta ou aquela pessoa, acostuma-se a vê-la. Quando ela lhe falta, é ainda uma exigência egoística que reclama contra o isolamento.

Mas os acontecimentos se sucedem, e o espírito de Montjoye transforma-se com eles.

Não relatarei esses acontecimentos nem indicarei o sentido dessa transformação. O leitor preferirá ir ver por seus próprios olhos os lances dramáticos, as situações novas, os traços enérgicos e verdadeiros com que estão acabados os caracteres da peça de O. Feuillet.

Reproduzir na cena um tipo tão verdadeiro e tão artisticamente acabado como Montjoye, é tarefa difícil para um ator. Consegui-lo é dar prova de muito talento. Folgo de mencionar aqui esta vitória do Sr. Pedro Joaquim, que fez um desempenho excelente do papel de Montjoye. No maior lance, como na menor frase, o artista soube conservar o caráter do papel, na altura em que o autor o colocou, e em que ele o compreendeu. Montjoye fica sendo um dos seus mais brilhantes títulos de artista.

O papel de Montjoye é o principal da peça; à roda dele movem-se as outras personagens, como para lançar um fundo no quadro em que ressalta aquela enérgica figura. O papel de Cecília, um dos tipos mais suaves da graça e de ingenuidade, é representado pela Sra. Adelaide com um talento a que o público fez justiça. A cena em que o pai lhe fala do casamento, e a que se segue, com Jorge de Sorel, merecem da parte da crítica sinceros aplausos: é difícil ser tão ingenuamente ingênua como a distinta artista o foi. A dor e a angústia daquela situação em que Cecília vê entrar no pátio o amante ferido foram reproduzidas por um grito e por um movimento fisionômico cheio de verdade.

Vai-se-me acabando o papel e minguando o espaço. Não entrarei em minuciosa análise dos outros papéis. Farei menção especial da mulher de Montjoye, papel que a Sra. Clélia representou com muita distinção. Os Srs. Salles Guimarães e Paiva merecem menção especial nos papéis de Saladin e Tiberge; talvez haja alguma coisa a exigir do Sr. Monvlar em uma ou em outra cena, mas esse artista soube em geral haver-se tão bem, que eu prefiro adiar as observações para o caso de reincidência. Uma primeira representação pode desculpar algumas faltas. É por isso que eu me abstenho de referir outras que achei no resto dos papéis.

Deixe um comentário

Arquivado em crônica

Estudemos; é o melhor conselho que posso dar ao leitor amigo; estudemos…

A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632, de Rembrandt
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632, de Rembrandt

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 13 de outubro de 1895, há exatos 113 anos.

Estudemos; é o melhor conselho que posso dar ao leitor amigo; estudemos. É domingo; não tens que ir ao trabalho. Já ouviste a tua missa, apostaste na vaca (antigo) e almoçaste entre a esposa e os pequenos. Em vez de perder o tempo em alguma leitura frívola, estudemos.

Temos duas lições e podíamos ter sete ou oito; mas eu não sou professor que empanzine a estudantes de boa vontade. Demais, há lições tão obvias que não vale a pena encher delas um parágrafo. Por exemplo, a declaração que fez o Sr. deputado Érico Coelho, esta semana, ao apresentar o projeto do monopólio do café. Declarou S. Ex., incidentemente, que já na véspera fora solicitado para, no caso de passar o monopólio, arranjar alguns empregos. Os deputados riram, mas deviam chorar, pois naturalmente não lhes acontece outra coisa com ou sem projetos.

A confissão do Sr. Érico Coelho faz lembrar o que sucedeu com Lamartine, chefe do governo revolucionário de 1848. Um cozinheiro foi empenhar-se com um deputado para empregá-lo em casa de Lamartine, “presidente da República”, disse o homem. — “Mas ele ainda não é presidente”, observou o deputado. Ao que retorquiu o cozinheiro que, se ainda não era, havia de se-lo, e devia ir já tratando da cozinha. Cozinheiros do monopólio de café, se advertísseis que Lamartine não foi eleito, mas outro, consideraríeis que o mesmo pode suceder ao monopólio de café. Quando não seja o mesmo, e a lei passe, é provável que passe daqui a um ou dois anos. Uma lei destas pede longos estudos, longos cálculos, longas estatísticas. O melhor é continuardes a cozinha das casas particulares.

A primeira das nossas duas lições refere-se não propriamente ao italiano que trepou à estátua de Pedro I e lá de cima arengou ao povo, mas às circunstâncias do caso. Ninguém sabe o que ele disse, por falar na língua materna, e nós só entendemos italiano por musica. O que sabemos, nos que lemos a notícia, é que, apesar da hora (dez e meia da noite) mais de quatrocentas pessoas se ajuntaram logo na praça Tiradentes, e intimaram ao homem que descesse. A ele acontecia-lhe o mesmo que aos de baixo; não entendia a língua. Vários planos surdiram para fazei-o desmontar o cavalo, — pedradas, um tiro, o corpo de bombeiros, mas nenhum foi adotado, e o tempo ia passando. Afinal um sargento do exercito e uma praça de polícia treparam à estatua, e, sem violência, com boas maneiras e muitas cautelas, desceram o pobre doido.

Ora, enquanto ocorria tudo isto, e as idéias voavam de todos os lados, alguns propuseram o alvitre de linchar o homem; e, com efeito, tão depressa ele pousou no chão, ergueram-se brados no sentido daquele julgamento sumário e definitivo. Outros, porém, opuseram-se, e o projeto não teve piores conseqüências.

Este é o ponto da lição. Aqui temos um grupo de pessoas, todas as quais, particularmente, repeliriam com horror a idéia de linchar a alguém, antes defenderiam a vítima. Juntas, porém, estavam dispostas a linchar o homem da estátua. Que o contágio da idéia é que produzia esse acordo de tantos, é coisa natural e sabida. Aquilo que não nasce em trinta cabeças separadas, brota em todas elas, uma vez reunidas, conforme a ocasião e as circunstâncias. Motivos diversos sem excluir o sentimento da justiça e a indignação do bem, podem dar azo a ações dessas, coletivas e sangrentas. Começo a distrair no sermão. Vamos à questão principal.

A principal questão, no caso da estátua, é o abismo entre o ato e a pena. O homem não tinha cometido nenhum crime público nem particular. Subiu ao cavalo de bronze, no que fez muito mal, devia respeitar o monumento; mas, enfim, não era delito de sangue que pedisse sangue. A probabilidade de ser doido podia não acudir a todos os espíritos, excitados pelo atrevimento do sujeito; se pudesse acudir, todos rogariam antes ao céu que ele fosse descido sem quebrar os ossos, a fim de que, recolhido novamente ao Hospício dos Alienados, recebesse segunda cura, tendo saído de lá curado, três ou quatro dias antes.

Esse contraste é que merece particular atenção. A familiaridade com a morte é bela, nos grandes momentos, e pode ser grandiosa, além de necessária. Mas, aplicada aos eventos miúdos, perde a graça natural e o poder cívico, para se converter em derivação de maus humores. É reviver a prática dos médicos de outro tempo, que a tudo aplicavam sanguessugas e sangrias. Quem nunca esteve com o braço estendido, à espera que as bichas caíssem de fartas, e não viu esguichá-las ali mesmo para lhes tirar o sangue que acabavam de sugar, não sabe o que era a medicina velha. Não havia que dizer, se era necessária; mas o uso vulgarizou-se tanto que o mau médico antes de atinar com a doença, mandava ao enfermo esse viático aborrecido. Às vezes, o mal era um defluxo. Que é a loucura senão uma supressão da transpiração do espírito?

A segunda lição que devemos ou deves estudar é a que se segue.

Um gatuno furtou diversas jóias e quatrocentos mil réis. O Sr. Noêmio da Silveira, delegado da 7. circunscrição urbana, moço inteligente e atilado, descobriu o gatuno e o furto. Até aqui tudo é banal. O que não é banal, o que nos abre uma larga janela sobre a alma humana, o que nos põe diante de um fenômeno de alta psicologia, é que o gatuno tão depressa furtou os quatrocentos mil réis como os foi depositar na caixa econômica. Medita bem, não me leias como os que tem pressa de ir apanhar o bond; lê e reflete. Como é que a mesma consciência pode simultaneamente negar e afirmar a propriedade? Roubar e gastar está bem; mas pegar do roubo e ir levai-o aonde os homens de ordem, os pais de família, as senhoras trabalhadeiras levam os saldos do salário e os lucros adventícios, eis aí o que me parece extraordinário. Não me digas que há viciosas que também vão à caixa econômica, nem que os bancos recebem dinheiros duvidosos. Ofício é ofício, e eu trato aqui do puro furto.

Assim é que, o empregado da caixa, vendo esse homem ir frequentemente levar uma quantia, adquire a certeza de ser pessoa honesta e poupada, e quando for para o céu, e o vir lá chegar depois, testemunhará em favor dele ante S. Pedro. Ao contrário, se lá estiver algum dos seus roubados, dirá que é um simples ratoneiro. O porteiro do céu, que negou três vezes a Cristo e mil vezes se arrependeu, concluirá que, se o. homem negou a propriedade por um lado, afirmou-a por outro, o que equivale a um arrependimento, e metê-lo-á onde estivessem as Madalenas de ambos os sexos.

Se eu houvesse de definir a alma humana, em vista da dupla operação a que aludo, diria que ela é uma casa de pensão. Cada quarto abriga um vício ou uma virtude. Os bons são aqueles em que os vícios dormem sempre e as virtudes velam e os maus… Adivinhaste o resto; poupas-me o trabalho de concluir a lição.

Deixe um comentário

Arquivado em crônica