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Escapamos de boa!

Giovanni Maria Mastai-Ferretti (Senigallia, 13 de Maio de 1792 - Roma, 7 de Fevereiro de 1878), o Papa Pio IX
Giovanni Maria Mastai-Ferretti (Senigallia, 13 de Maio de 1792 – Roma, 7 de Fevereiro de 1878), o Papa Pio IX

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, em 22 de outubro de 1871, há exatos 137 anos.

Escapamos de boa!

Ali ao pé de nós, a vinte minutos de viagem, ali na formosa Niterói, esteve há dias prestes a romper uma guerra terrível – uma guerra entre a província do Rio de Janeiro e a Itália.

Dois deputados provinciais propuseram que a assembléia, em nome da província, protestasse “contra o escândalo de que é vítima o Santo Padre” – que esta sendo “acometido insólita e traiçoeiramente em seus direitos incontestáveis”, e cuja posição “é nimiamente precária, injusta, inqualificável, vexatória e atentatória, etc.”.

Isto é declarar guerra à Itália, creio que era uma e a mesma coisa.

Para sustentar o seu ultimato fez o Sr. padre Alves dos Santos um discurso, não longo, mas entremeado de apartes, com que os seus colegas iam cortando-lhe impiedosamente as asas.

O melhor, porém, aquilo em que o Sr. padre Alves dos Santos me pareceu abjurar dos princípios da nossa Igreja, foi um aparte que deu ao Sr. Mattoso Ribeiro.

Dizia este seu colega:

“— A conquista do território romano nada tem com a religião católica, apostólica, romana, — porque, se o Papa sai de Roma, não se perderá o catolicismo.”

Acode o Sr. Alves dos Santos:

“– Está muito enganado!”

Ó divino Cristo, que pensarás tu ao ouvir esta resposta? Dizias uma necessidade quando afirmavas que contra a tua Igreja não prevaleceriam as portas do inferno. Estavas em erro, meu divino Cristo. A força da tua Igreja não vem da tua doutrina; vem de alguns quilômetros de território. O catolicismo em Roma vale tudo; se o pusessem em Jerusalém, não valia nada. Verité em deçà, erreur au delà.

Victor Manuel deixou ainda uma parte da cidade ao Santo Padre; é por isso que existe a Igreja. Se ele amanhã o expulsasse de lá, acabava-se o catolicismo. Victor Manuel dava cabo da obra de Jesus; podia mais que o inferno.

Em trocos miúdos, é a opinião do deputado fluminense.

É escusado dizer que todo o católico, e o próprio deputado se refletir no dito, deve repelir tão singular opinião.

Em todo o caso, ainda que o orador tivesse razão, não era motivo para que a assembléia provincial rompesse as relações (que não tem) com a Itália. O Sr. Vieira Souto acudiu a tempo, desbastando a moção inicial, com uma emenda que nada compromete, e assim ficou encerrado o incidente.

Perguntam-me várias pessoas se não estou disposto a dizer alguma coisa a respeito do caso triste e digno de memória que se deu entre uma freira da Ajuda e o nosso prelado.

Respondi que sim, e pretendia navegar nas águas do Sr. Ribeiro Franco, quando o Jornal do Commercio de quinta-feira, em que vem a resposta de um Sr. Apostolo ao irmão da finada freira. Mudei de opinião.

O tal Apostolo, depois de algumas expressões que apostam mansidão com as do Evangelho, explica francamente que o pedido da freira era fraqueza feminil; que a carne, a carne, e mais a carne (ils sont très espirituels) não devia ser atendida; que S. Excia. fez ouvidos de mercador (textual) às lamúrias encapotadas da carne (textual) já, solene e irrevogavelmente, renunciada pela dita freira, etc.

Depois de tão vigorosa resposta, pensava eu que o Sr. Ribeiro Franco poria termo aos seus artigos.
Mas qual!

O irmão da finada quer imitar os comunistas de Paris que também morderam o nosso prelado…

Aqui para o leitor, e pergunta se estou zombando dele.

Não, caro leitor; não zombo, repito o que nos disse a referida folha:

“O nosso sábio e virtuoso bispo foi de modo insólito agredido pelo Sr. José Ribeiro Franco, por um fato bem simples, que bem demonstra que a impiedade desenvolve todos os dias mais força a ponto de não trepidar, como os comunistas de Paris, em erguer o asqueroso colo para fincar dentes envenenados na sagrada pessoa do nosso preclaro e virtuosíssimo bispo, inegavelmente a honra e glória do episcopado brasileiro”.

O Sr. José Ribeiro Franco continua, pois, a imitar a comuna de Paris.

No seu artigo de quinta-feira censura o nosso prelado por haver dito que S. José era duas vezes onipotente.

Não se dá maior impiedade! Bem se vê que o Sr.Ribeiro Franco parou nos evangelistas e nos padres da Igreja. Está abaixo do seu século; anda na aldeia e não vê as casas.

O erro do Sr. Ribeiro Franco provém de uma ilusão deplorável. S. S. supõe que nós ainda estamos no Cristianismo, quando essa religião vai senão vantajosamente substituída pelo Marianismo.

A demissão do Padre, do Filho e do Espírito Santo pode-se dizer que é um fato; não está oficialmente publicado, mas é um fato. A teoria do Marianismo é que Deus nada pode contra a vontade de Nossa Senhora, e se nada pode, pode menos, e se pode menos é poder inferior.

A isto se prende naturalmente a idéia das duas onipotências de S. José.

A propósito. . .

Corre em Lisboa, já, em 2ª. edição, e sei se aqui também, um livrinho com o título : Novíssimo mês de Maria, ou mês das flores, coordenado pelo padre J. L. L.

A devoção de Maria e a consagração que se lhe fez do mês de maio, são coisas dignas de respeito: cumpria, porém, que estas obras, já que estamos no século XIX, se despissem de superstições que não levantam o ânimo do povo.

Não li o livro aludido; mas uma folha de Lisboa transcreve um pedaço que aí se lê a págs. 308,309 e 310.

Destacarei o primeiro período da transcrição para que melhor se aprecie a doutrina:

“Nas crônicas dos padres capuchinhos (cap. 11, part. 1ª.) se conta que em Veneza havia um célebre advogado, o qual com enganos e injustiças tinha enriquecido, e vivia em mau estado. Não tinha talvez de bom mais que rezar todos os dias uma certa oração à Santíssima Virgem; e contudo esta pobre devoção lhe valeu para escapar da morte eterna pela misericórdia de Maria.”

Leitor sagaz, isto é um verdadeiro achado. Trapaceia como puderes, dá, a tua facadazinha, e fica certo de que escaparás da morte eterna mediante uma oração a Virgem — é a receita mais barata que se conhece. . . renouvellée de Louis XI.

Vejamos agora o resto da notícia; precisa ser lida com muita atenção e sem se perder uma linha.

Lá vai:

“. . . E eis aqui como. Por fortuna sua, tomou este advogado amizade com o padre fr. Matheus de Basso, e tanto lhe pediu que viesse um dia jantar a sua casa, que finalmente lhe fez a vontade. Chegando a casa, lhe disse o advogado: Ora, padre, eu quero-lhe fazer ver uma coisa que nunca terá visto. Eu tenho uma macaca admirável, a qual me serve como um criado, lava os copos, põe a mesa, abre-me a porta. – Veja (lhe respondeu o padre) não seja essa macaca mais alguma coisa: faça-me a vir aqui.

“Chamou ele a macaca, tornou-a a chamar, procurou-a por toda a parte, e a macaca não aparecia; finalmente foram achar debaixo do leito, escondida em um vaso da casa ; mas a macaca dali não queria sair. Então disse o religioso: Vamos nós buscá-la. E chegando juntamente com o advogado, onde estava a macaca, lhe disse o religioso: Besta infernal, sai para fora, e da parte de Deus te mando, que declares quem és. Respondeu a macaca que era o Demônio e que estava esperando que aquele pecador deixasse de rezar algum dia aquela acostumada oração à Mãe de Deus porque a primeira vez que deixasse, tinha ordem de Deus para afogar, e levá-lo para o inferno. Com esta resposta o pobre advogado se pôs logo de joelhos pedindo ao religioso que o socorresse, o qual o animou e mandou ao demônio que se ausenta-se daquela casa sem fazer dano a coisa alguma. – Só te dou licença (lhe disse o religioso) que, em sinal de te teres ausentando, rompas uma parede destas casas. – Apenas lhe disse isto, se viu, depois de se ouvir um grande estrondo, feita na parede uma abertura, a qual, ainda que muitas vezes intentaram tapar com pedra, quis Deus que por muito tempo perseverasse; até que por conselho do religioso se pôs naquela abertura, uma pedra, com a figura de um anjo. O advogado se converteu; e esperamos que dali por diante continuaria na mudança da vida até a hora da morte.”

Não explica o autor do livrinho, nem a crônica dos capuchos, nem o jornal a que aludi, por que motivo foi Deus buscar para seu instrumento um demônio, podendo servir-se de um anjo, que era muito mais natural. Também não compreendo muito a razão por que Deus não consentiu que se tapasse o buraco da parede, e só depois de muito tempo deixou de fazer oposição a essa obra necessária.

São verdadeiros mistérios em que nunca poderá meter o dente o…

Dr. Semana.

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Quem põe o nariz fora da porta, vê que este mundo não vai bem…

terra gravida

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, em 6 de outubro de 1895, há exatos 113 anos.

Quem põe o nariz fora da porta, vê que este mundo não vai bem. A Agência Havas é melancólica. Todos os dias enche os jornais, seus assinantes, de uma torrente de notícias que, se não matam, afligem profundamente. Ao pé delas, que vale o naufrágio do paquete alemão Uruguai, em Cabo-Frio? Nada. Que vale o incêndio da fabrica da companhia Luz Esteárica? Coisa nenhuma. Não falo do desaparecimento de uns autos celebres, peça que está em segunda representação, à espera de terceira, porque não é propriamente um drama, embora haja nela um salteador ou coisa que o valha, como nas de Montepin; é um daqueles mistérios da Idade-Média, ornado de algumas expressões modernas sem realidade, como esta: — Ce pauvre Auguste! On l’a mis au poste. — Dame, c’est triste, mais c’est juste. — Ce pauvre Auguste! Expressão sem realidade, pois ninguém foi nem irá para a cadeia, por uns autos de nada.

Foi o Chico Moniz Barreto, violinista filho de poeta, que trouxe de Paris aquela espécie de mofina popular, que então corria nas escolas e nos teatros. Lá vão trinta anos! Talvez poucos franceses se lembrem dela; eu, que não sou francês, nem fui a Paris, não a perdi de memória por causa do Chico Moniz Barreto, artista de tanto talento, discípulo de Allard, um rapaz que era todo arte, brandura e alegria. A graça principal estava na prosódia das mulheres do povo em cuja boca era posto esse trecho de dialogo, — e que o nosso artista baiano imitava, suprimindo os tt às palavras: — Ce pauvr’ Auguss’! On l’a mis au poss’! — Dam’ c’est triss’ mais c’est juss’! — Ce pauvr’ Auguss’! — Pobre frase! pobres mulheres! Foram-se como os tais autos e o veto, le ress’!

Mas tornemos ao presente e à Agência Havas. São rebeliões sobre rebeliões, Constantinopla e Cuba, matança sobre matanças, China e Armênia. Os cristãos apanham dos muçulmanos, os muçulmanos apanham de outros religiosos, e todos de todos, até perderem a vida e a alma. Conspirações não têm conta; as bombas de dinamite andam lá por fora, como aqui as balas doces, com a diferença que não as vendem nos bonds, nem os vendedores sujam os passageiros. Os ciclones, vendo os homens ocupados em se destruírem, enchem as bochechas e sopram a alma pela boca fora, metendo navios no fundo do mar, arrasando casas e plantações, matando gente e animais. Tempestades terríveis desencadeiam-se nas costas da Inglaterra e da França e despedaçam navios contra penedos. Um tufão levou anteontem parte da catedral de Metz. A terra treme em vários lugares. Os incêndios devoram habitações na Rússia. As simples febres de Madagascar abrem infinidade de claros nas tropas francesas. Pior é o cólera-morbo; mais rápido que um tiro, tomou de assalto a Moldávia, a Coréia, a Rússia, o Japão e vai matando como as simples guerras.

Na Espanha, em Granada, os rios transbordam e arrastam consigo casas e culturas. Granada, ai, Granada, que fases lembrar o velho romance:

Passeava-se el Rey Moro
Por la ciudad de Granada..
.

romance ou balada, que narra o transbordamento do rio cristão, arrancando aos mouros o resto da Espanha. Relede os poetas românticos, que chuparam até o bagaço da laranja mourisca e falaram delia com saudades. Relede o magnífico intróito do Colombo do nosso Porto-Alegre: Jaz vencida Granada… Nem reis agora são precisos, pobre Granada, nem poetas te cantam as desgraças; basta a Agência Havas. Os jornais que chegarem dirão as coisas pelo miúdo com aquele amor da atração que fazem as boas notícias.

Não é mais feliz a Itália com o banditismo que renasce, à maneira velha, tal qual o cantaram poetas e disseram novelistas. Uns e outros esgotaram a poesia dos costumes; agora é a polícia e o código. Parece que a grande miséria, filha das colheitas perdidas, cresce ao lado do banditismo e do imposto.

Na Hungria dá-se um fenômeno interessante: desordeiros clericais respondem aos tiros das tropas com pedradas e bengaladas, e há mortos de parte a parte, mortos e feridos. É que a fé também inspira as bengalas. Eis aí rebeldes dispostos a vencer; não se lhes há de pedir que desarmem primeiro, se quiserem ser anistiados. Desarmar de que? A bengala não é sequer um apoio, é um simples adorno de passeio; pouco mais que os suspensórios, apenas úteis. Úteis, digo, sem assumir a responsabilidade da afirmação. Não conheço a historia dos suspensórios, sei, quando muito, que César não usava deles, nem Cícero, nem Poncio Pilatos. Quando eu era criança, toda gente os trazia; mais tarde, não sei por que razão, elegante ou cientifica, foram proscritos. Vieram anos, e os suspensórios com eles, diz-se que para acabar com o mal dos cozes. Talvez se vão outra vez com o século, e tornem com o centenário da batalha de Waterloo.

Assim vai o mundo, meu amigo leitor; o mundo é um par de suspensórios. Comecei dizendo que ele não me parece bem, sem esquecer que tem andado pior, e, para não ir mais longe, há justamente um século. Mas a razão do meu receio é a crença que me devora de que o mal estava acabado, a paz sólida, e as próprias tempestades e moléstias não seriam mais que mitos, lendas, histórias para meter medo às crianças. Por isso digo que o mundo não vai bom, e desconfio que há algum plano divino, oculto aos olhos humanos. Talvez a terra esteja grávida. Que animal se move no útero desta imensa bolinha de barro, em que nos despedaçamos uns aos outros? Não sei; pode ser uma grande guerra social, nacional, política ou religiosa, uma deslocação de classes ou de raças, um enxame de idéias novas, uma invasão de bárbaros, uma nova moral, a queda dos suspensórios, o aparecimento dos autos.

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