Arquivo da tag: poeta

Todas as coisas têm a sua filosofia…

O bonde

Um bonde na avenida Marechal Floriano, no Rio de Janeiro

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 23 de outubro de 1892, há exatos 116 anos.

Todas as coisas têm a sua filosofia. Se os dois anciãos que o bonde elétrico atirou para a eternidade esta semana, houvessem já feito por si mesmos o que lhes fez o bonde, não teriam entestado com o progresso que os eliminou. É duro dizer; duro e ingênuo, um pouco à La Palisse; mas é verdade. Quando um grande poeta deste século perdeu a filha, confessou, em versos doloridos, que a criação era uma roda que não podia andar sem esmagar alguém. Por que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobres veículos?

Há terras, onde as companhias indenizam as vítimas dos desastres (ferimentos ou mortes) com avultadas quantias, tudo ordenado por lei. É justo; mas essas terras não têm, e deviam ter, outra lei que obrigasse os feridos e as famílias dos mortos a indenizarem as companhias pela perturbação que os desastres trazem ao horário do serviço. Seria um equilíbrio de direitos e de responsabilidades. Felizmente, como não temos a primeira lei, não precisamos da segunda, e vamos morrendo com a única despesa do enterro e o único lucro das orações.

Falo sem interesse. Dado que venhamos a ter as duas leis, jamais a minha viúva indenizará ou será indenizada por nenhuma companhia. Um precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que não passava pela frente de um bonde, sem calcular a hipótese de cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar ao outro lado. Era um bom conselho, como o Doutor Sovina era uma boa farsa, antes das farsas do Pena. Eu, o Pena dos cautelosos, levo o cálculo adiante: calculo ainda o tempo de escovar-me no alfaiate próximo. Próximo pode ser longe, mas muito mais longe é a eternidade.

Em todo caso, não vamos concluir contra a eletricidade. Logicamente, teríamos de condenar todas as máquinas, e, visto que há naufrágios, queimar todos os navios. Não, senhor. A necrologia dos bondes tirados a burros é assaz comprida e lúgubre para mostrar que o governo de tração não tem nada com os desastres. Os jornais de quinta-feira disseram que o carro ia apressado, e um deles explicou a pressa, dizendo que tinha de chegar ao ponto à hora certa, com prazo curto. Bem; poder-se-iam combinar as coisas, espaçando os prazos e aparelhando carros novos, elétricos ou muares, para acudir à necessidade pública. Digamos mais cem, mais duzentos carros. Nem só de pão vive o acionista, mas também da alegria e da integridade dos seus semelhantes.

Convenho que, durante uns quatro meses, os bondes elétricos andem muito mais aceleradamente que os outros, para fugir ao riso dos vadios e à toleima dos ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade é uma versão do processo culinário à la minute, e podem vir a enlamear o veículo com alcunhas feias. Lembra-me (era bem criança) que, nos primeiros tempos do gás no Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gás virou lamparina. E o dito ficou e impôs-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, às belezas murchas, a todas as coisas decaídas.

Ah! se eu for a contar memórias da infância, deixo a semana no meio, remonto os tempos e faço um volume. Paro na primeira estação, 1864, famoso ano da suspensão de pagamentos (ministério Furtado); respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das ações atacou a esta pobre cidade, que só arribou à força do quinino do desengano. Remonto ainda e vou a…

Aonde? Posso ir até antes do meu nascimento, até Law. Grande Law! Também tu tiveste um dia de celebridade; depois, viraste embromador e caíste na casinha da história, o lugar dos lava-pratos. E assim irei de século a século, até o paraíso terrestre, forma rudimentária do encilhamento, onde se vendeu a primeira ação do mundo. Eva comprou-a à serpente, com ágio, e vendeu-a a Adão, também com ágio, até que ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do paraíso terrestre, ao Fiat lux, que, bem estudado ao gás do entendimento humano, foi o princípio da falência universal.

Não; cuidemos só da semana. A simples ameaça de contar as minhas memórias diminuiu-me o papel em tal maneira, que é preciso agora apertar as letras e as linhas.

Semana quer dizer finanças. Finanças implicam financeiros. Financeiros não vão sem projetos, e eu não sei formular projetos. Tenho idéias boas, e até bonitas, algumas grandiosas, outras complicadas, muito 2%, muito lastro, muito resgate, toda a técnica da ciência; mas falta-me o talento de compor, de dividir as idéias por artigos, de subdividir os artigos em parágrafos, e estes em letras a b c; sai-me tudo confuso e atrapalhado. Mas por que não farei um projeto financeiro ou bancário, lançando-lhe no fim as palavras da velha praxe: salva a redação? Poderia baralhar tudo, é certo; mas não se joga sem baralhar as cartas; de outro modo é embaraçar os parceiros.

Adeus. O melhor é ficar calado. Sei que a semana não foi só de finanças, mas também de outras coisas, como a crise de transportes, a carne, discursos extraordinários ou explicativos, um projeto de estrada de ferro que nos põe às portas de Lisboa, e a mulher de César, que reapareceu no seio do parlamento. Vi entrar esta célebre senhora por aquela casa, e, depois de alguns minutos, via-se sair. Corri à porta e detive-a: — “Ilustre Pompéia, que vieste fazer a esta casa?” — “Obedecer ainda uma vez à citação da minha pessoa. Que queres tu? meu marido lembrou-se de fazer uma bonita frase, e entregou-me por todos os séculos a amigos, conhecidos e desconhecidos.”

1 comentário

Arquivado em crônica

Estudemos; é o melhor conselho que posso dar ao leitor amigo; estudemos…

A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632, de Rembrandt
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632, de Rembrandt

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 13 de outubro de 1895, há exatos 113 anos.

Estudemos; é o melhor conselho que posso dar ao leitor amigo; estudemos. É domingo; não tens que ir ao trabalho. Já ouviste a tua missa, apostaste na vaca (antigo) e almoçaste entre a esposa e os pequenos. Em vez de perder o tempo em alguma leitura frívola, estudemos.

Temos duas lições e podíamos ter sete ou oito; mas eu não sou professor que empanzine a estudantes de boa vontade. Demais, há lições tão obvias que não vale a pena encher delas um parágrafo. Por exemplo, a declaração que fez o Sr. deputado Érico Coelho, esta semana, ao apresentar o projeto do monopólio do café. Declarou S. Ex., incidentemente, que já na véspera fora solicitado para, no caso de passar o monopólio, arranjar alguns empregos. Os deputados riram, mas deviam chorar, pois naturalmente não lhes acontece outra coisa com ou sem projetos.

A confissão do Sr. Érico Coelho faz lembrar o que sucedeu com Lamartine, chefe do governo revolucionário de 1848. Um cozinheiro foi empenhar-se com um deputado para empregá-lo em casa de Lamartine, “presidente da República”, disse o homem. — “Mas ele ainda não é presidente”, observou o deputado. Ao que retorquiu o cozinheiro que, se ainda não era, havia de se-lo, e devia ir já tratando da cozinha. Cozinheiros do monopólio de café, se advertísseis que Lamartine não foi eleito, mas outro, consideraríeis que o mesmo pode suceder ao monopólio de café. Quando não seja o mesmo, e a lei passe, é provável que passe daqui a um ou dois anos. Uma lei destas pede longos estudos, longos cálculos, longas estatísticas. O melhor é continuardes a cozinha das casas particulares.

A primeira das nossas duas lições refere-se não propriamente ao italiano que trepou à estátua de Pedro I e lá de cima arengou ao povo, mas às circunstâncias do caso. Ninguém sabe o que ele disse, por falar na língua materna, e nós só entendemos italiano por musica. O que sabemos, nos que lemos a notícia, é que, apesar da hora (dez e meia da noite) mais de quatrocentas pessoas se ajuntaram logo na praça Tiradentes, e intimaram ao homem que descesse. A ele acontecia-lhe o mesmo que aos de baixo; não entendia a língua. Vários planos surdiram para fazei-o desmontar o cavalo, — pedradas, um tiro, o corpo de bombeiros, mas nenhum foi adotado, e o tempo ia passando. Afinal um sargento do exercito e uma praça de polícia treparam à estatua, e, sem violência, com boas maneiras e muitas cautelas, desceram o pobre doido.

Ora, enquanto ocorria tudo isto, e as idéias voavam de todos os lados, alguns propuseram o alvitre de linchar o homem; e, com efeito, tão depressa ele pousou no chão, ergueram-se brados no sentido daquele julgamento sumário e definitivo. Outros, porém, opuseram-se, e o projeto não teve piores conseqüências.

Este é o ponto da lição. Aqui temos um grupo de pessoas, todas as quais, particularmente, repeliriam com horror a idéia de linchar a alguém, antes defenderiam a vítima. Juntas, porém, estavam dispostas a linchar o homem da estátua. Que o contágio da idéia é que produzia esse acordo de tantos, é coisa natural e sabida. Aquilo que não nasce em trinta cabeças separadas, brota em todas elas, uma vez reunidas, conforme a ocasião e as circunstâncias. Motivos diversos sem excluir o sentimento da justiça e a indignação do bem, podem dar azo a ações dessas, coletivas e sangrentas. Começo a distrair no sermão. Vamos à questão principal.

A principal questão, no caso da estátua, é o abismo entre o ato e a pena. O homem não tinha cometido nenhum crime público nem particular. Subiu ao cavalo de bronze, no que fez muito mal, devia respeitar o monumento; mas, enfim, não era delito de sangue que pedisse sangue. A probabilidade de ser doido podia não acudir a todos os espíritos, excitados pelo atrevimento do sujeito; se pudesse acudir, todos rogariam antes ao céu que ele fosse descido sem quebrar os ossos, a fim de que, recolhido novamente ao Hospício dos Alienados, recebesse segunda cura, tendo saído de lá curado, três ou quatro dias antes.

Esse contraste é que merece particular atenção. A familiaridade com a morte é bela, nos grandes momentos, e pode ser grandiosa, além de necessária. Mas, aplicada aos eventos miúdos, perde a graça natural e o poder cívico, para se converter em derivação de maus humores. É reviver a prática dos médicos de outro tempo, que a tudo aplicavam sanguessugas e sangrias. Quem nunca esteve com o braço estendido, à espera que as bichas caíssem de fartas, e não viu esguichá-las ali mesmo para lhes tirar o sangue que acabavam de sugar, não sabe o que era a medicina velha. Não havia que dizer, se era necessária; mas o uso vulgarizou-se tanto que o mau médico antes de atinar com a doença, mandava ao enfermo esse viático aborrecido. Às vezes, o mal era um defluxo. Que é a loucura senão uma supressão da transpiração do espírito?

A segunda lição que devemos ou deves estudar é a que se segue.

Um gatuno furtou diversas jóias e quatrocentos mil réis. O Sr. Noêmio da Silveira, delegado da 7. circunscrição urbana, moço inteligente e atilado, descobriu o gatuno e o furto. Até aqui tudo é banal. O que não é banal, o que nos abre uma larga janela sobre a alma humana, o que nos põe diante de um fenômeno de alta psicologia, é que o gatuno tão depressa furtou os quatrocentos mil réis como os foi depositar na caixa econômica. Medita bem, não me leias como os que tem pressa de ir apanhar o bond; lê e reflete. Como é que a mesma consciência pode simultaneamente negar e afirmar a propriedade? Roubar e gastar está bem; mas pegar do roubo e ir levai-o aonde os homens de ordem, os pais de família, as senhoras trabalhadeiras levam os saldos do salário e os lucros adventícios, eis aí o que me parece extraordinário. Não me digas que há viciosas que também vão à caixa econômica, nem que os bancos recebem dinheiros duvidosos. Ofício é ofício, e eu trato aqui do puro furto.

Assim é que, o empregado da caixa, vendo esse homem ir frequentemente levar uma quantia, adquire a certeza de ser pessoa honesta e poupada, e quando for para o céu, e o vir lá chegar depois, testemunhará em favor dele ante S. Pedro. Ao contrário, se lá estiver algum dos seus roubados, dirá que é um simples ratoneiro. O porteiro do céu, que negou três vezes a Cristo e mil vezes se arrependeu, concluirá que, se o. homem negou a propriedade por um lado, afirmou-a por outro, o que equivale a um arrependimento, e metê-lo-á onde estivessem as Madalenas de ambos os sexos.

Se eu houvesse de definir a alma humana, em vista da dupla operação a que aludo, diria que ela é uma casa de pensão. Cada quarto abriga um vício ou uma virtude. Os bons são aqueles em que os vícios dormem sempre e as virtudes velam e os maus… Adivinhaste o resto; poupas-me o trabalho de concluir a lição.

Deixe um comentário

Arquivado em crônica

Enquanto eu cuido da semana, São Paulo cuida dos séculos, que é mais alguma coisa…

Rodovia Anchieta
Vista aérea Rodovia Anchieta (SP-150) que liga a capital paulista, São Paulo, à Baixada Santista.

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, em 4 de outubro de 1896, há exatos 112 anos.
 

Enquanto eu cuido da semana, São Paulo cuida dos séculos, que é mais alguma coisa. Comemora-se ali a figura de José de Anchieta, tendo já havido três discursos, dos quais dois foram impressos, e em boa hora impressos; honram os nomes da Eduardo Prado e de Brasílio Machado, que honraram por sua palavra elevada e forte ao pobre e grande missionário jesuíta. A comemoração parece que continua. O frade merece-a de sobra. A crônica dera-lhe as suas páginas. Um poeta de viva imaginação e grande estro, o autor do Cântico do Calvário, pegou um dia da figura dele e meteu-a num poema. Agora é a apoteose da palavra e da crítica. Uma feição caracteriza estas homenagens, é a neutralidade. Ao pé de monarquistas há republicanos, e à frente destes vimos agora o presidente do Estado. Dizem que este soltara algumas palavras de entusiasmo paulista por ocasião da última conferência. De fato, uma terra em que as opiniões do dia podem apertar as mãos por cima de uma grande memória é digna e capaz de olhar para o futuro, como o é de olhar para o passado. A faculdade de ver alto e longe não é comum.

É doce contemplar de novo uma grande figura. Aquele jesuíta, companheiro de Nóbrega e Leonardo Nunes, está preso indissoluvelmente à história destas partes. A imaginação gosta de vê-lo, a três séculos de distância, escrevendo na areia da praia os versos do poema da Virgem Maria, por um voto em defesa da castidade, e confiando-os um a um à impressão da memória. A piedade ama os seus atos de piedade. É preciso remontar às cabeceiras da nossa história para ver bem que nenhum prêmio imediato e terreno se oferecia àquele homem e seus companheiros. Cuidavam só de espalhar a palavra cristã e civilizar bárbaros; para isso era tudo Anchieta, além de missionário. A habitação dele e dos outros era o que ele mesmo escrevia a Loiola, em agosto de 1554: “E aqui estamos, às vezes mais de vinte dos nossos, numa barraquinha de caniço e barro, coberta de palha, catorze pés de comprimento, dez de largura. É isto a escola, é a enfermaria, o dormitório, refeitório, cozinha, despensa”.

Justo seria que alguma coisa lembrasse aqui, entre nós, a nome de Anchieta, — uma rua, se não há mais. A nossa Intendência Municipal acaba de decretar que não se dêem nomes de gente viva às ruas, salvo “quando as pessoas se recomendarem ao reconhecimento e admiração pública por serviços relevantes prestados à pátria ou ao município, na paz ou na guerra”. Anchieta está morto e bem morto; é caso de lhe dar a homenagem que tão facilmente se distribui a homens que nem sequer estão doentes, e mal se podem dizer maduros; tanto mais quando o presidente do Conselho Municipal não é só brasileiro, é também paulista e bom paulista. Certo, nós amamos as celebridades de um dia, que se vão com o sol, e as reputações de uma rua que acabou ao dobrar da esquina. Vá que brilhem; os vaga-lumes não são menos poéticos por serem menos duradouros; com pouco fazem de estrelas. Tudo serve para nos cortejarmos uns aos outros.

A própria lei municipal tem uma porta aberta aos obséquios particulares. Nem sempre a vontade do legislador estará presente, e as leis corrompem-se com os anos. Quando o atual conselho desaparecer, lá virá alguém que, por haver inventado um chapéu elástico, uma barbatana espiritual ou, finalmente, outro jataí que ajude a limpar os brônquios e as algibeiras, — tenha ocasião de ver pintado o seu nome na esquina da rua em que mora, e, se morar longe, em outra qualquer. É o anúncio gratuito, o troco miúdo da glória. E não há de ser escasso prazer, antes largo e demorado, ler na esquina de uma rua o próprio nome. Não haverá conversação de bond ou a pé que faça esquecer a placa; por mais atenção que mereça o interlocutor, seja um homem ou uma senhora, — os olhos do beneficiado cumprimentarão de esguelha as letras do benefício. Alguma vez passearão pelas caras dos outros, a ver se também olham. Os crimes que se derem na rua, os incêndios, os desastres serão outras tantas ocasiões de reler o nome impresso e reimpresso; assim também as casas de negócio, os anúncios de criados, o obituário e o resto. Enfim, o uso positivista de datar os escritos da rua em que o autor mora, uma vez generalizado, ajudará a derramar a boa notícia da nossa fama.

Nem por isso deixarão de falir os que tiverem de falir, se forem negociantes; não há nome de esquina que pague um crédito. Este momento, se é certo o que corre, ameaça de ponto final a muita gente. Dizem que há numerosas petições de falência. Se serão atendidas é o que não se sabe, porque o deferimento pode trazer a dissolução geral de todos os vínculos pecuniários. E quando os que vendem quebram, imaginai os que compram. Estes deviam rigorosamente matar-se, imitando a gente do Japão, onde os suicídios são em maior número quando o arroz está caro, e em menor quando está barato. Arroz ou morte! é o grito daquela nação. Nós, para quem tudo é caro, desde a sopa até a sobremesa, vivemos a ver em que param os preços, — os preços ou os bichos.

Entretanto, ao passo que os negociantes do Rio de Janeiro pedem crédito, não o acham e querem fechar as portas, o presidente do Espírito Santo deseja que lhe diminuam a faculdade de abrir créditos.

Em conseqüência das razões que acabo de apresentar-vos (diz o Dr. Graciano das Neves em sua recente mensagem) dou prova da maior lealdade, Srs. Deputados, pedindo-vos que voteis na presente sessão alguma disposição de lei que restrinja com prudência a faculdade que tem o presidente de abrir créditos suplementares às verbas orçadas pelo congresso. Eu, que aprendi o que era bill de indenidade no capítulo da abertura de créditos, mal posso crer no que leio. Um presidente de Estado que, tendo a faculdade de abrir créditos, e podendo não os abrir, pede que lhe atem as mãos, dá mostra que é ainda mais psicólogo que presidente. É como se dissesse que as boas intenções do dia 15 podem não ser as mesmas do dia 16 e 17, e o melhor é não fiar na vontade. Não sei se o caso é único; falta-me tempo de compulsar as mensagens de ambos os mundos, mas com certeza não é comum nem velho.

Não é velho, mas tende a ser comum o uso delicado de concluírem os jurados as sessões, ordinárias ou extraordinárias, deixando nas mãos do presidente e do promotor uma lembrança. A penúltima trazia como razão a polidez dos magistrados. A última, que foi anteontem, não alegou tal motivo, para tirar ao ato qualquer aspecto de gratidão. O presidente teve duas estatuetas de bronze, e o promotor uma rica bengala. Não é pouco ir julgar os pares, obrigatoriamente, com perda ou sem perda dos próprios interesses; a lembrança, porém, realça o serviço público. A prova de que a instituição do júri está arraigada na nossa alma e costumes é essa necessidade moral que têm os juízes de fato de se fazerem lembrados dos magistrados, a quem a sociedade confia a punição dos delinqüentes. Resta que os magistrados, por sua vez, dêem alguma lembrança aos cidadãos, e que estes saiam com botões de punho novos ou carteiras de couro da Rússia. São prendas baratas e significativas.

Deixe um comentário

Arquivado em crônica

Não é preciso dizer que estamos na primavera…


Mademoiselle Gachet in her garden at Auvers-sur-Oise, Vincent Van Gogh, 1890

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, em 27 de setembro de 1896, há exatos 112 anos.

Não é preciso dizer que estamos na primavera; começou esta semana… Oh! bons tempos em que os da minha turma repetíamos aquilo do poeta: Primavera, giuventú dell’anno: giuventú, primavera della vita! Alguns iam ao ponto de repetir aquilo outro do lusitano: Ah! não me fujas! Assim nunca o breve tempo fuja da tua formosura! Vai tudo em linha de prosa, que é de prosa o meu tempo, não o teu, leitor de buço e vinte anos; donde resulta a mais trivial das verdades deste mundo, e provavelmente do outro, que o tempo é para cada um de nós o que cada um de nós é para ele. Nem todos terão aquele verdor nonagenário do visconde de Barbacena, que não sei se veio ao mundo no mesmo dia que Victor Hugo, dois anos depois de começado o século, mas em todo caso já então Rome remplaçait Sparte. Quem o vê andar, falar, recordar tudo, examinar, discernir, entrar e sair de um tramway, como os rapazes seus netos, põe de lado estações e idades, e crê que, em suma, tudo isto se reduz a nascer ou não com grande força e conservá-la.

Dizem as gentes européias que a primavera nas suas terras delas entra com muito maior efeito, quase de súbito, fazendo fugir o inverno diante de si. Entre nós, povo lido, a primavera entra pelos almanaques. Não lia almanaque, não lia folhinha, ainda as que servem só de mimo aos assinantes de jornais, que não traga a entrada da primavera no seu dia próprio, fixo e único. Já é alguma coisa; e quando a civilização chegar ao ponto de só dominar neste mundo o espírito do homem, mais valerá ter a primavera encadernada na estante que lá fora na campina, se é que ainda haverá campina. O natural é que os homens se vão estendendo, e as casas com eles, e as ruas e os teatros e as instituições, e todo o mais aparelho da vida social. A terra será pequena, a gente prolífica, a vida um salão, o mundo um gabinete de leitura.

Não te aflijas se a estação das flores não entra aqui como por outras partes; aqui é eterna. A terra vale o que ainda agora nos disse de Pernambuco o Sr. Studebaker, um dos membros da comissão americana, que há pouco nos deixou. A carta desse cavalheiro é um documento que devia estar diante dos olhos de cada um de nós; não dirá nada novo, mas é um testemunho pessoal e americano. Diz ela que nós podemos produzir tudo quanto nasce da terra… mas temos entre nós homens perniciosos, tornando-se necessário que os íntegros se dediquem à causa do bem. Creio em ambas as coisas; mas toda a nossa dificuldade vem de não sabermos exatamente quais são os perniciosos nem quais são os íntegros. Vimos ainda agora em Sergipe que os perniciosos são dois, o padre Campos e o padre Dantas, e que os íntegros não são outros. De onde resulta uma anistia em favor do padre Campos.

Também recomenda braços o nosso hóspede, braços e temor a Deus. O segundo é preocupação anglo-saxônia, que não entra fundo em almas latinas ou alatinadas. Quanto aos braços, era eu pequeno, e, apesar da vasta escravatura que havia, já se chorava por eles. Muitos tinham sido já chamados e fixados. Vieram depois mais e mais, até que vieram muitos e muitos. Os alemães enchiam o sul; os italianos estão chegando aos magotes, e se a última questão afrouxou um pouco a importação, não tarda que esta continue e a questão acabe. É o que se espera do ministro novo, Sr. De Martino. Que há já muito italiano, é verdade; mas esta raça é fácil de ser assimilada, e trabalha e prospera. Tive amigos que vinham dela, e tu também, e aí os há que não vêm de outra origem.

Agora mesmo ouço cantar um pássaro, e, se me não engano, canta italiano. Também os há que cantam alemão; Lulu Junior acha que a música desta segunda casta é melhor que a daquela. Eu creio que todos os pássaros são pássaros e todos os cantos são bonitos, contanto que não sejam feios. O que não quero é que se negue ao alemão o direito de ser cantado. A língua que ora ouço ao pássaro é, como digo, a italiana, e por pouco parece-me Carlos Gomes. Eis aí um que ligou bem os dois países, as duas histórias e já agora as duas saudades. Partiu ontem um vapor armado em guerra para conduzi-lo até cá. Viva o Pará, que rejeitou a idéia de o mandar em navio mercante, e pôs por condição que ou viria com todas as honras da Arte e da Morte, ou ficaria lá com ele. Não ficaria mal à beira do Amazonas o cantor do nosso Brasil, nem o Pará merece menos que qualquer outra parte; ao contrário, a terra que serviu de berço a Carlos Gomes não teve para ele mais carinhos que essa que lhe serviu de leito mortuário, e, em todo caso, teve-os na prosperidade. Dá-los à dor é maior.

Estávamos… Creio que estávamos nos braços italianos, não os que amam e fazem amar, mas os que lavram a terra; foram eles que me trouxeram aqui, a propósito do industrial americano, que lá vai. Tem-se dito que há muita aglomeração italiana em S. Paulo, o mesmo que se havia dito em relação aos alemães nas colônias do Sul. Há destas onde a língua do país não é falada nem ensinada, nem sabida, ou mal sabida por alguns rudimentos escassos que os próprios mestres alemães dão aos seus meninos, a fim de que de todo em todo não ignorem o meio de pedir fogo a alguém ou bradar por socorro. A culpa não é deles, mas nossa; e, se tal sucede em S. Paulo, a culpa é de S. Paulo.

Há tempos falou-se no mal das grandes aglomerações de uma só raça. Seja-me lícito citar um nome que os acontecimentos levaram, como levam outras coisas mais que nomes, o de Rodrigo Silva, que foi aqui ministro da agricultura. Este ministro tinha por muito recomendado aos encarregados da colonização que intercalassem as raças, não só umas com as outras, mas todas com a do país, a fim de impedir o predomínio exclusivo de nenhuma. Circulares que o vento leva; a política era boa e fácil e dava ganho a todos, aos de fora como aos de dentro. Mas as circulares são como as ilusões; verdejam algum tempo, amarelecem e caem logo; depois vêm outras…

Deixemos, porém, essa matéria mais de artigo de fundo que de crônica, e tornemos ao céu azul, ao sol claro, à temperatura fresca. Não há desfalque pequeno nem grande que resista ao efeito da bela catadura da natureza. Que vale um desfalque ao pé da saúde, que é a vida integral, a perfeita contabilidade humana? Depois, a saúde sente-se igualmente, não há duas opiniões sobre ela; o desfalque, sem negar que é alguma coisa que falta (geralmente dinheiro), não há dúvida que é idéia filha da civilização, e a civilização, como dizia um filósofo amador do meu tempo, é sinônimo de corrupção. E há sempre duas opiniões sobre o desfalque, — a do desfalcado e a outra.

Que haja falta de dinheiro em alguma parte, é natural. Esta coisa que uns americanos querem deva ter por padrão tão somente o ouro, outros a prata igualmente, ainda se não acostumou tanto aos homens que não se esconda deles algumas vezes, e não desapareça como as simples bolas nas mãos de um prestidigitador. Dinheiro por ser dinheiro não deixa de ter vergonha; o pudor comunica-se das mãos à moeda, e o gesto mais certo do pudor é fugir aos olhos estranhos, — ou, pelo menos às mãos, como na ilha dos Amores. Daí os desfalques; fica só o algarismo escrito, a moeda esvai-se; tais as ninfas da ilha correm nuas:

…………….. aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando.

Não importa; os que teimarem hão de acabar como o cavaleiro do poeta, que afinal pôde deitar os braços a uma das ninfas esquivas. E depois, ainda que não se alcance nenhuma, a terra é fértil, a população grande, e a gente nova aí vem com os seus braços para trabalhar e colher, não menos que para amar e engendrar. Tudo aqui é calor de primavera; a América, bem considerada, é a primavera da história. Há uma diferença entre esta e a do norte, é que por ora não brigamos por ouro ou prata, Bryan ou McKinley; o papel nos basta e sobra.

Deixe um comentário

Arquivado em crônica