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O Rio de Janeiro está em festas — festas realizadas anteontem e festas adiadas para 24 e 25. O casamento da herdeira da coroa é o assunto do momento…

Princesa Isabel, Conde D'Eu e familia
D. Pedro II e família em Petrópolis, foto de Otto Hees

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 1864, há exatos 144 anos.

O Rio de Janeiro está em festas — festas realizadas anteontem e festas adiadas para 24 e 25. O casamento da herdeira da coroa é o assunto do momento.

Um céu puro e um sol esplêndido presidiram no dia 15 a este acontecimento nacional. A natureza dava a mão aos homens; o céu comungava com a terra.

Não descreverei nem a festa oficial nem a festa pública. Quem não assistiu à primeira leu já a relação dela nos andares superiores dos jornais; na segunda todos tomaram parte — mais ou menos — todos viram o que se fez, em arcos, coretos, pavilhões, iluminações, espetáculos, aclamações e mil outras coisas. E sobretudo ninguém deixou de ver e sentir a melhor festa, que é a festa da alegria íntima, natural, espontânea, a festa do cordial respeito que o povo tributa à primeira família da nação.

Uma das coisas que fez mais efeito nesta solenidade foi a extrema simplicidade com que trajava a noiva imperial. É impossível desconhecer o delicado pensamento que a este fato presidiu, na idade e na condição de Sua Alteza: as suas graças naturais, as virtudes do coração e o amor deste país, são o seu melhor diadema e a suas jóias mais custosas.

As festas celebradas anteontem, e que deviam continuar hoje, foram adiadas para 24 e 25, época em que devem os augustos consortes voltar de Petrópolis. Até lá o Rio de Janeiro apresentará o aspecto da mais completa desolação?

Refiro-me ao temporal, a esse temporal único, assombroso, aterrador, que os velhos de oitenta anos viram pela primeira vez, que os adolescentes de quinze anos esperam não ver segunda vez no resto dos seus dias, a esse temporal, que, se durasse 2 horas, deixava a nossa cidade reduzida a um montão de ruínas.

Durante uns dez minutos tivemos, nós, os fluminenses, uma imagem do que seria o grande cataclismo que extinguiu os primeiros homens. Rompeu-se uma catarata do céu; Éolo soltou os seus tufões; o trovão rolou pelo espaço; e um dilúvio de pedras enormes começou a cair sobre a cidade com a violência mais aterradora que se tem visto.

Seria o látego com que a divindade nos castigava? O mesmo temporal tinha-se dado em São Paulo poucos dias antes; dar-se-á caso que tenhamos de vê-lo repetido em todas as cidades do mundo? Se assim for, não há dúvida de que são chegados os tempos; os tufões são, portanto, os batedores do cometa Newmager, com que me ocupei num dos meus primeiros folhetins.

Os leitores estarão lembrados do que eu disse nessa ocasião, aceitando o cometa como um castigo do céu. Apesar de já descrer até dos cometas, não pude recusar a este o testemunho da minha fé. Eu lastimei então que um anúncio feito tão tarde não pudesse fornecer aos homens o meio de conjurar o cataclismo, cessando a transmissão dos seus vícios e dos seus defeitos às gerações que se lhes seguissem, embora continuassem eles a ser hipócritas, velhacos, ingratos, difamadores, egoístas, vaidosos, ridículos.

Se acreditava, porém, no cometa, ainda assim não deixava de nutrir certa esperança. Essa esperança começa a desvanecer-se diante dos prenúncios que vão aparecendo.

A proximidade do Átila celeste revoluciona o espaço; não há dúvida que o tufão que começa a varrer a face da terra é a respiração do monstro. E, a julgar pela violência, o monstro está próximo.

Não repetirei aqui o trocadilho que toda a gente repetiu durante a semana — até o Cruzeiro do Brasil — o trocadilho da quebra dos banqueiros e da quebra das vidraças. Mas se falo em vidraças é só para dar um conselho aos vidraceiros. Foram estes os únicos que aproveitaram com o temporal. Há cerca de duzentos mil vidros quebrados no Rio de Janeiro; os vidraceiros aproveitaram a ocasião e declaram-se os soberanos reparadores dos males da cidade. Em conseqüência, altearam os preços.

Os vidraceiros desconhecem os seus próprios interesses. Baixar os preços era a única medida da ocasião, por isso que, havendo trabalho em abundância, convinha assegurar esse trabalho pela perspectiva da modicidade do custo. Mas, como a operação de encher vidraças não requer estudos preliminares de lógica, os vidraceiros podem facilmente abster-se de raciocinar, e o resultado é cometerem um erro, quando podiam exercer duas virtudes: — primeira, socorrer facilmente aos males públicos; a segunda, fazer no orçamento dos seus ganhos um aumento de verba.

Demais — e é isto o importante — os proprietários, receosos do cataclismo de 1865,quererão acaso envidraçar as suas casas para ver perdidos, dentro de pouco tempo, o dinheiro e o trabalho? Eu acho que não, e nesse caso, se é difícil reparar os estragos do temporal do dia 10, com os preços ínfimos, sê-lo-á muito mais, com os preços alteados.

Ofereço estas reflexões à corporação dos vidraceiros da capital.

Se é verdade que o cometa deve aparecer e se as revoluções da atmosfera são sintomas da presença do Átila celeste, é para admirar — mais do que em circunstâncias ordinárias — o ato que a população fluminense apreciou no sábado: a ascensão do aeronauta Wells.

Pois que, ousado mortal! quando um habitante do espaço ameaça visitar a terra, quando os teus semelhantes tremem de pavor só a essa idéia, ousas tu — de alma alegre e coração à larga — invadir os domínios aéreos, afrontar o dito habitante no seio da sua própria casa?

Esta arrojada visita aérea — que é bastante para despertar a idéia de represálias — foi executada no sábado, como se sabe, às 11 horas da manhã.

O dia estava magnífico; o céu azul, o ar puríssimo. Tudo convidava o Sr. Wells a realizar as suas promessas. O campo de Sant’Anna regurgitava de povo que correu a ver aquele espetáculo duplamente curioso: — primeiro, por ser arrojado; depois, por ser gratuito.

O balão subiu no meio de aclamações.

Não era o primeiro espetáculo deste gênero efetuado na capital, mas é sempre digno de ser visto e apreciado.

Pouco tempo depois o Sr. Wells descia sobre o morro da Viúva, calmo e tranqüilo, como quem volta para casa, depois de um passeio higiênico.

Anuncia-se nova ascensão para o dia 24.

Então pretende o Sr. Wells admitir alguns amadores. Vou já avisando aos corajosos da capital; dizem que na próxima ascensão irá com o Sr. Wells uma americana. É vergonhoso que o exemplo de uma mulher não seduza a muitos homens, tanto mais que neste caso há dois balões, em vez de um, o que torna mais efetiva a segurança.

Completem os leitores mentalmente as muitas páginas que eu podia escrever neste assunto e a propósito da última ascensão.

A conquista do ar! Quem é que não se sente tomar de entusiasmo frente esta nova aplicação dos conhecimentos humanos? Enquanto os leitores deixam assim correr a imaginação pelo ar, o folhetinista atravessa os mares e vai ver em longes terras da Europa um poeta e um livro.

Cantos fúnebres é o novo livro do Sr. Dr. Gonçalves de Magalhães. Não é completamente um livro novo; uma parte das poesias estão já publicadas. Compõe-se dos Mistérios (cantos à morte dos filhos do poeta), algumas nênias à morte de amigos, vários poemas e uma tradução da Morte de Sócrates, de Lamartine.

O autor dos Cantos fúnebres ocupa um lugar eminente na poesia nacional. O voto esclarecido dos julgadores já lh’o reconheceu, a sua nomeada é das mais legítimas.

Quando os Mistérios apareceram em volume separado, o público brasileiro aceitou e leu esse livrinho, assinado pelo nome já venerado do eminente poeta, com verdadeiro respeito e admiração.

O sucesso dos Mistérios foi merecido; nunca o autor dos Suspiros poéticos tinha realizado tão brilhante a união da poesia e da filosofia: ao pé de três túmulos, sufocado pelas próprias lágrimas, o poeta pôde mais facilmente casar essas duas potências da alma. A elevação do sentido e a melancólica harmonia do verso eram dignas do assunto.

Tão superior é o merecimento dos Mistérios que agora mesmo, no meio de um livro de trezentas e tantas páginas, eles ocupam o primeiro lugar e se avantajam em muito ao resto da obra.

Não li toda a tradução da Morte de Sócrates, nem a comparei ao original; mas as páginas que cheguei a ler pareceram-me dignas do poema de Lamartine. O próprio tradutor declara que empregou imenso cuidado em conservar a frescura original e os toques ligeiros e transparentes do poema. Essa devia ser, sem dúvida, uma grande parte da tarefa; para traduzir Lamartine é precioso saber suspirar versos como ele. As poucas páginas que li dizem-me que os esforços do poeta não foram vãos.

Os Cantos fúnebres encontrarão da parte do público brasileiro o acolhimento a que têm direito. Tanto mais devem procurar o novo livro quanto este volume é o 6° da coleção das obras completas do poeta, que o Sr. Garnier vai editar.

O volume que tenho à vista é nitidamente impresso. A impressão é feita em Viena, aos olhos do autor, garantia para que nenhum erro possa escapar; sendo esta a edição definitiva das obras do poeta, é essencial que ela venha limpa de erros.

Um bom livro, uma bela edição — que mais pode desejar o leitor exigente?

Passemos ao teatro.

O Ginásio representou na sexta-feira uma nova peça, — Montjoye, em 5 atos e 6 quadros, por Octavio Feuillet.

Montjoye teve um grande triunfo em Paris. Crítica e platéia se juntaram para coroar a nova composição do autor da Dalila e doRomance de um moço pobre. Ora, a nova composição era a primeira em que O. Feuillet deixava a esfera fantástica e ideal de Maximo Odiot e de André Roswein, para pisar a terra chã da vida real e dos costumes burgueses. O poeta cortava as asas para envergar o paletó.

Mas, ninguém melhor que o autor da Dalila podia cometer essa empresa. Descendo à vida prática, ele trazia consigo as chaves de ouro com que abria as portas da fantasia; soube penetrar na realidade sem tomar a natureza dela: tinha palheta e tintas, desdenhou a máquina e o colódio. Em resumo, não submeteu a musa às exigências de uma realidade estéril; sujeitou a realidade às mãos instruídas da musa. É o que se conhece vendo a nova peça do autor da Dalila.

Même quand l’oiseau marche on voit qu’il a des ailes.

O tipo de Montjoye está reproduzido com habilidade de mestre. Montjoye é o homem prático, o homem utilitário, o homem forte. Todos os bons sentimentos, todas as ilusões da mocidade, são para ele inúteis quimeras; indicai-lhe a melhor aptidão, adornada por essas ilusões, cheia desses sentimentos, ela nada valerá para ele; mostrai-lhe, pelo contrário, a inteligência esperançosa, mas nua desses sentimentos e dessas ilusões, mostrai-lhe Gendrin, e ele dará um suspiro de lamentação, quando lhe vieram dizer que o pobre rapaz morreu em Xangai.

Momo, consultado por Júpiter sobre a organização do homem, notou um defeito: o de não ter ele uma janela no coração por onde todos lhe vissem os sentimentos. Se Deus consultasse Montjoye no mesmo assunto, este criticaria a própria existência do coração e aconselharia a supressão dele.

Montjoye só conhece uma utilidade nos sentimentos dos outros homens: é a de lhe servir aos fins que ele tenha em vista.

Aproveitará a fibra humanitária de Saladin para preparar a candidatura à câmara dos deputados; dará plena sanção ao amor de Cecília, uma vez que o próximo casamento quebre nas mãos do adversário político uma arma eleitoral.

Ele próprio faz a sua profissão de fé; só acredita em duas coisas; em moral, o meu é o teu, — em filosofia, dois e dois são quatro. Fora daí — há o vácuo.

Assim estudado, o tipo de Montjoye mostra-se, desenvolve-se, afirma-se de ato para ato. Um dia, já separado dos seus, Montjoye sente que lhe falta alguma coisa; não é ainda o sentimento da saudade e do amor; é puramente o gosto do hábito; Montjoye não estima esta ou aquela pessoa, acostuma-se a vê-la. Quando ela lhe falta, é ainda uma exigência egoística que reclama contra o isolamento.

Mas os acontecimentos se sucedem, e o espírito de Montjoye transforma-se com eles.

Não relatarei esses acontecimentos nem indicarei o sentido dessa transformação. O leitor preferirá ir ver por seus próprios olhos os lances dramáticos, as situações novas, os traços enérgicos e verdadeiros com que estão acabados os caracteres da peça de O. Feuillet.

Reproduzir na cena um tipo tão verdadeiro e tão artisticamente acabado como Montjoye, é tarefa difícil para um ator. Consegui-lo é dar prova de muito talento. Folgo de mencionar aqui esta vitória do Sr. Pedro Joaquim, que fez um desempenho excelente do papel de Montjoye. No maior lance, como na menor frase, o artista soube conservar o caráter do papel, na altura em que o autor o colocou, e em que ele o compreendeu. Montjoye fica sendo um dos seus mais brilhantes títulos de artista.

O papel de Montjoye é o principal da peça; à roda dele movem-se as outras personagens, como para lançar um fundo no quadro em que ressalta aquela enérgica figura. O papel de Cecília, um dos tipos mais suaves da graça e de ingenuidade, é representado pela Sra. Adelaide com um talento a que o público fez justiça. A cena em que o pai lhe fala do casamento, e a que se segue, com Jorge de Sorel, merecem da parte da crítica sinceros aplausos: é difícil ser tão ingenuamente ingênua como a distinta artista o foi. A dor e a angústia daquela situação em que Cecília vê entrar no pátio o amante ferido foram reproduzidas por um grito e por um movimento fisionômico cheio de verdade.

Vai-se-me acabando o papel e minguando o espaço. Não entrarei em minuciosa análise dos outros papéis. Farei menção especial da mulher de Montjoye, papel que a Sra. Clélia representou com muita distinção. Os Srs. Salles Guimarães e Paiva merecem menção especial nos papéis de Saladin e Tiberge; talvez haja alguma coisa a exigir do Sr. Monvlar em uma ou em outra cena, mas esse artista soube em geral haver-se tão bem, que eu prefiro adiar as observações para o caso de reincidência. Uma primeira representação pode desculpar algumas faltas. É por isso que eu me abstenho de referir outras que achei no resto dos papéis.

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Entrou a estação eleitoral. Começa a florescência das circulares políticas…

Bailarinas atando as sapatilhas
Bailarinas atando as sapatilhas, 1893-1898, de Edgar Degas

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 15 de outubro de 1893, há exatos 115 anos.

Entrou a estação eleitoral. Começa a florescência das circulares políticas. Há climas em que este gênero de planta é mais decorativo que efetivo; as arengas aí valem mais. Entre nós, sem deixar de ser decorativa, a circular dispensa o discurso.

Realmente, ajuntarem-se trezentas, seiscentas, mil, duas, três, cinco mil pessoas para escutar durante duas horas o que pensa o Sr. X. de algumas questões públicas, não é negócio de fácil desempenho. Creio que vai nisso mais costume ou afetação que necessidade política. Vai também um tanto de astúcia. Os candidatos percebem naturalmente que homens juntos são mais aptos para aceitar uma banalidade do que absolutamente separados. Mais aptos, note-se, não nego que, dentro do próprio quarto, sem mulher, sem filhos, sem criados, sem retratos, sem sombra de gente, um homem tenha a aptidão precisa para aceitar uma idéia sem valor. A aptidão, porém, cresce com o número e a comunhão das pessoas.

A circular é outra coisa. A primeira vantagem da circular é não ser longa. Não pode ser longa; é cada vez mais curta, algumas são curtíssimas. A segunda vantagem é ir buscar o eleitor; não é o eleitor que vai ouvi-la da boca do candidato. Vede bem a diferença. Em vez de convidar-me a deixar a família, o sossego, o passeio, a palestra, a circular deixa-me digerir em paz o jantar e dormir. Na manhã seguinte, ao café, é que ela aparece, ou em forma de carta selada, ou simplesmente impressa nos jornais, o que é mais expedito e mais para se ler. É preciso não conhecer a natureza humana para não ver que há já em mim alguma simpatia para o homem que assim me comunica as suas idéias, no remanso do meu gabinete, pelo telefone de Gutenberg.

Agora mesmo acabo de ler a circular do Sr. Malvino Reis. É um documento interessante e prático. Tenho notado que o espírito acadêmico, o scholar, inclina-se particularmente à teoria, pronto em admitir uma idéia apenas indicada no livro de propaganda. O homem de outra origem e diversa profissão é essencialmente prático; vai ao necessário e ao possível. Não se deixa levar pela beleza de uma doutrina, muita vez inconsciente, muita vez oposta à realidade das coisas. Por exemplo, o Sr. Malvino Reis não apresenta programa político, e dá a razão desta lacuna: “No momento atual em que, infelizmente, nossa pátria se acha envolvida em uma comoção interna, que todos lastimamos e que todo o coração brasileiro acha-se enlutado, não é ocasião própria para a apresentação de programas políticos…”

A tese é discutível. Parece, ao contrário, que os programas políticos são sempre indispensáveis, uma vez que é por estes que o eleitor avalia a candidatura; mas é preciso ler para diante, a fim de apanhar todo o pensamento: “… programas políticos, que geralmente são alterados…” Aqui está o espírito prático. Explica-se a lacuna, porque os programas costumam ser alterados; não alterados ao sabor do capricho ou do interesse, mas segundo a hipótese formulada no final do período: “… alterados, quando assim o exige o bem público.” Não é usual esta franqueza; por isso mesmo é que esse documento político se destacará da grande maioria deles.

Outro ponto em que a circular confirma o meu juízo é o post-scriptum. Diz-se aí que “o 2° distrito é composto das freguesias de S. José, Sacramento, Santo Antônio, Sant’Ana. Espírito-Santo e S. Cristóvão.” Aparentemente é ocioso. Indo ao âmago, vê-se a necessidade, e descobre-se quanto o candidato conhece o eleitor. O eleitor é, em grande parte, distraído, indolente e um pouco ignorante. Pode saber a que freguesia pertence, mas, em geral, não suspeita do seu distrito. Daí o memento final. É prático. Outros cuidariam mais da linguagem; melhor é curar do que interessa ao voto e seus efeitos.

Não me acusem de parcialidade, nem de estar a recomendar um nome. Não conheço nomes, emprego-os porque é um modo de distinguir os homens. Um ponto há em que a circular do Sr. Malvino Reis combina com as do Sr. Ribeiro de Almeida e Dr. Alves da Silva, candidatos pelo 7° distrito de Minas: é a economia dos dinheiros públicos. Nunca leio esta frase que me não lembre de um ministério de 186…, cujo programa, exposto pelo respectivo chefe, consistia em duas coisas: a economia dos dinheiros públicos e a execução das leis. Eis aí um credo universal, um templo único. Eu, se estivesse então na câmara, qualquer que fosse o meu programa político, alterava-o com certeza. Assim o exigia o bem público.

Não pus o ano exato do ministério, por me não lembrar dele, não por esconder a minha idade. Assim também, — entre parêntesis, — se na crônica passada disse conhecer o finado Garnier, há vinte anos, a culpa não foi minha, nem da composição, nem da revisão, mas desta letra do diabo. Trinta anos é que devia ter saído. Mas que querem? Também a letra envelhece. A minha, quando moça, não era bonita, mas fazia-se entender melhor. Há dias dei com um antigo bilhete de José Telha. Que corte de letra, Deus dos exércitos! era um regimento de soldados, mais ou menos bem alinhados, marchando com regularidade, a tempo. Hoje é uma turba de recrutas. Entretanto, José Telha não é velho; mas, se há pessoas que precedem a letra, como o Sr. senador Cristiano Otoni, cuja escrita de octogenário tem a virilidade antiga, letras há que precedem a pessoa; é o caso de José Telha. Em qual das classes estarei eu? retournons à nos moutons.

Estes carneiros eram, se bem me lembro, a execução das leis e a economia dos dinheiros públicos.

Seria injustiça dizer que os dois candidatos do 7º distrito de Minas limitam à economia o seu programa. Há mais que ela. Uma das circulares, posto tenha apenas dez linhas, encerra quatro idéias. Não são novas, mas são idéias. A outra é menos curta, mas pouco mais tem do dobro. Entre os artigos do programa desta, figura a liberdade religiosa, que não parece bastante ao candidato, uma vez que o casamento civil é obrigatório; quer torná-lo facultativo. A circular fala também da necessidade de medidas que fixem o trabalhador nas fazendas. Pela minha parte, não vejo nada tão eficaz como o contrato da antiga câmara municipal com um empresário da numeração de casas, legalizado por uma postura. Muda-se o número de uma casa, põe-se-lhe placa nova, e o morador recebe um aviso impresso desse benefício, no qual se lhe diz que vá pagar o preço à rua (creio que Nova do Ouvidor) sob pena de cadeia.

Quanto às outras partes do programa da circular… Mas aonde vou eu neste andar administrativo e político? Musa da crônica, musa vária e leve, sacode essas grossas botas eleitorais, calça os sapatinhos de cetim, e dança, dança na pontinha dos pés, como as bailarinas de teatro; gira, salta, deixa-te cair de alto, com todas as tuas escumilhas e pernas postiças. Antes postiças que nenhumas.

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Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria…

terra gravida
“Pourriez-vous résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cinquante ans?”

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, em 8 de outubro de 1893, há exatos 115 anos.

Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Revertere ad locum tuum — está escrito no alto da porta do cemitério de S. João Baptista. “Não, — murmurou ele talvez dentro do caixão mortuário, quando percebeu para onde o iam conduzindo, — não é este o meu lugar; o meu lugar é na rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, à esquerda; é ali que estão os meus livros, a minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escrituração”.

Durante meio século, Garnier não fez outra coisa senão estar ali, naquele mesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns anos, com a morte no peito, descia todos os dias de Santa Tereza para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontrá-lo na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os seus pés direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe porque não descansava algum tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cinquante ans? Na véspera da morte, se estou bem informado, achando-se de pé, ainda planejou descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos à livraria.

Essa livraria é uma das últimas casas da rua do Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. Não cito os nomes das que se foram, porque não as conhecereis, vós que sois mais rapazes que eu, e abristes os olhos em uma rua animada e populosa onde se vendem, ao par de belas jóias, excelentes queijos. Uma das últimas figuras desaparecidas foi o Bernardo, o perpétuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos charutos do duque de Caxias, que tinha fama de os fumar únicos, ou quase únicos. Há casas como a Laemmert e o Jornal do Commercio, que ficaram e prosperaram, embora os fundadores se fossem; a maior parte, porém, desfizeram-se com os donos.

Garnier é das figuras derradeiras. Não aparecia muito; durante os 20 anos das nossas relações, conheci-o sempre no mesmo lugar, ao fundo da livraria, que a princípio era em outra casa, nº 69, abaixo da rua Nova. Não pude conhecê-lo na da Quitanda, onde se estabeleceu primeiro. A carteira é que pode ser a mesma, como o banco alto onde ele repousava, às vezes, de estar em pé. Aí vivia sempre, pena na mão, diante de um grande livro, notas soltas, cartas que assinava ou lia. Com o gesto obsequioso, a fala lenta, os olhos mansos, atendia a toda gente. Gostava de conversar o seu pouco. Neste caso, quando a pessoa amiga chegava, se não era dia de mala, ou se o trabalho ia adiantado e não era urgente, tirava logo os óculos, deixando ver no centro do nariz uma depressão do longo uso deles. Depois vinham duas cadeiras. Pouco sabia de política da terra, acompanhava a de França, mas só o ouvi falar com interesse por ocasião da guerra de 1870. O francês sentiu-se francês. Não sei se tinha partido; presumo que haveria trazido da pátria, quando aqui aportou, as simpatias da classe média para com a monarquia orleanista. Não gostava do império napoleônico. Aceitou a república, e era grande admirador de Gambetta.

Daquelas conversações tranqüilas, algumas longas, estão mortos quase todos os interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim Norberto, José de Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria era um ponto de conversação e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma Branco, romance e comédia que fizeram as delícias de uma geração inteira. Com José de Alencar foi diferente; ali travamos as nossas relações literárias. Sentados os dois, em frente à rua, quantas vezes tratamos daqueles negócios de arte e poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. Não os cito, porque teria de nomear um cemitério, e os cemitérios são tristes, não em si mesmos, ao contrário. Quando outro dia fui a enterrar o nosso velho livreiro, vi entrar no de S. João Batista, já acabada a cerimônia e o trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres, como quem não pisa memorial nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo único, sem embargo das suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal é a visão dos primeiros anos.

Não citemos nomes.

Nem mortos, nem vivos. Vivos há-os ainda, e dos bons, que alguma coisa se lembrarão daquela casa e do homem que a fez e perfez. Editar obras jurídicas ou escolares não é mui difícil; a necessidade é grande, a procura certa. Garnier, que fez custosas edições dessas, foi também editor de obras literárias, o primeiro e o maior de todos. Os seus catálogos estão cheios dos nomes principais, entre os nossos homens de letras. Macedo e Alencar, que eram os mais fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo Guimarães, que também produziu muito nos seus últimos anos, figuram ao pé de outros, que entraram já consagrados, ou acharam naquela casa a porta da publicidade e o caminho da reputação.

Não é mister lembrar o que era essa livraria tão copiosa e tão variada, em que havia tudo, desde a teologia até à novela, o livro clássico, a composição recente, a ciência e a imaginação, a moral e a técnica. Já a achei feita; mas vi-a crescer ainda mais, por longos anos. Quem a vê agora, fechadas as portas, trancados os mostradores, à espera da justiça, do inventário e dos herdeiros, há de sentir que falta alguma coisa à rua. Com efeito, falta uma grande parte dela, e bem pode ser que não volte, se a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espírito.

Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do trabalho, um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se dele, não pôde mais; o instrumento da riqueza era também o do castigo. Esta é uma das misericórdias da Divina Natureza. Não importa: laboremos. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas páginas dos dicionários biográficos. Perdure a notícia, ao menos, de alguém que neste pais novo ocupou a vida inteira em criar uma indústria liberal, ganhar alguns milhares de contos de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpétua. Perpétua!

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