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Os dois maiores acontecimentos dos últimos trinta anos nesta cidade

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O Jornal Gazeta de Notícias foi fundado em 2 de agosto de 1875

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 6 de agosto de 1893, há exatos 116 anos.

A Gazeta completou os seus dezoito anos. Ao sair da festa de família com que ela celebrou o seu aniversário, fui pensando no que me disse um conviva, excelente membro da casa, a saber, que os dois maiores acontecimentos dos últimos trinta anos nesta cidade foram a Gazeta e o bond.

Tens razão, Capistrano. Um e outro fizeram igual revolução. Há um velho livro do Padre Manuel Bernardes, cujo título, Pão partido em pequeninos, bem se pode aplicar à ação dos dois poderosos instrumentos de transformação. Antigamente as folhas eram só assinadas; poucos números avulsos se vendiam e, ainda assim, era preciso ir comprá-los ao balcão, e caro. Quem não podia assinar o Jornal do Commercio, mandava pedi-lo emprestado, como se faz ainda hoje com os livros, — com esta diferença que o Jornal era restituído — e com esta semelhança: que voltava mais ou menos enxovalhado.

As outras folhas — não tinham o domínio da notícia e do anúncio da publicação solicitada, da parte comercial e oficial; demais, serviam a partidos políticos. A mor parte delas (para empregar uma comparação recente) vivia o que vivem as rosas de Malherbe.

Quando a Gazeta apareceu, o bond começava. A moça que vem hoje à Rua do Ouvidor, sempre que lhe parece, à hora que quer, com a mamãe, com a prima, com a amiga, porque tem o bond à porta e à mão, não sabe o que era morar fora da cidade ou longe do centro. Tínhamos diligências e ônibus; mas eram poucos, com poucos lugares, creio que oito ou dez, e poucas viagens. Um dos lugares era eliminado para o público. Ia nele o recebedor, um homem encarregado de receber o preço das passagens e abrir a portinhola para dar entrada ou saída aos passageiros. Um cordel, vindo pelo tejadilho, punha em comunicação o cocheiro e o recebedor; este puxava, aquele parava ou andava. Mais tarde, o cocheiro acumulou os dois ofícios. Os veículos eram fechados, como os primeiros bonds, antes que toda a gente preferisse os dos fumantes e inteiramente os desterrasse.

— Já passou a diligência? Lá vem o ônibus! Tais eram os dizeres de outro tempo. Hoje não há nada disso. Se algum homem, morador em rua que atravesse a da linha, grita por um bond que vai passando ao longe, não é porque os veículos sejam raros, como outrora, mas porque o homem não quer perder este bond, porque o bond pára, e porque os passageiros esperam dois ou três minutos, quietos. Esperar, se me não falha a memória, é a última palavra do Conde de Monte-Cristo. Todos somos Monte-Cristos, posto que o livro seja velho. Falemos à gente moça, à gente de vinte e cinco anos, que era apenas desmamada, quando se lançaram os primeiros trilhos, entre a Rua Gonçalves Dias e o largo do Machado. O bond foi posto em ação, e a Gazeta veio no encalço. Tudo mudou. Os meninos, com a Gazeta debaixo do braço e pregão na boca, espalhavam-se por essas ruas, berrando a notícia, o anúncio, a pilhéria, a crítica, a vida, em suma, tudo por dois vinténs escassos. A folha era pequena; a mocidade do texto é que era infinita. A gente grave, que, quando não é excessivamente grave, dá apreço à nota alegre, gostou daquele modo de dizer as coisas sem retesar os colarinhos. A leitura impôs-se, a folha cresceu, barbou, fez-se homem, pôs casa; toda a imprensa mudou de jeito e de aspecto.

Não me puxem as orelhas pelo que disse acerca das folhas políticas. Se não eram vivedouras outrora, se hoje o não podem ser sem outro algum condimento, a culpa não é minha. E digo mal, políticas; partidárias é que deve ser. De política também tratam as outras. A questão é um pouco mais longa que esta página, e mais profunda que esta crônica; mas sempre lhes quero contar uma história.

Um telegrama datado de Buenos-Aires, 3, deu notícia de que a Nación, órgão do General Mitre, aconselha a união de todos os cidadãos, no meio da desordem, que vai por algumas províncias argentinas. Ora, ouçam a minha história que é de 1868. Nesse ano, Mitre, que assumira o poder em 1860, depois de uma revolução, concluiu os dois prazos constitucionais de presidente; fizera-se a eleição do presidente e saíra eleito Sarmiento, que então era representante diplomático da república nos Estados-Unidos. Vi este Sarmiento, quando passou por aqui para ir tomar conta do governo argentino. Boas carnes, olhos grandes, cara rapada. Tomava chá no Club Fluminense, no momento em que eu ia fazer o mesmo, depois de uma partida de xadrez com o professor Palhares. Pobre Palhares! Pobre Club Fluminense! Era um chá sossegado, entre nove e dez horas, um baile por mês, moças bonitas, uma principalmente… Une surtout, un ange… O resto está em Victor Hugo. Un ange, une jeune espagnole. A diferença é que não era espanhola. Sarmiento vinha, creio eu, do paço de S. Cristóvão ou do Instituto Histórico; estava de casaca, bebia o chá, trincava torradas, com tal modéstia que vinguem diria que ia governar uma nação.

Quando Sarmiento chegou a Buenos-Aires e tomou conta do governo, quiseram fazer a Mitre, que o entregava, uma grande manifestação política. A idéia que vingou foi criar um jornal e dar-lho. Esse jornal é esta mesma Nación que é ainda órgão de Mitre, e que ora aconselha (um quarto de século depois) a união de todos os cidadãos. É um jornal enorme de não sei quantas páginas. Em trocos miúdos, os jornais partidários precisam de partido, um partido faz- se com homens que votem, que paguem, que leiam.

Há ler sem pagar; não é a isso que me refiro. Há também pagar sem ler; falo de outra coisa. Digo ler e pagar, digo votar, digo discutir, escolher, fazer opinião. Sem ela, sem uma boa opinião ativa, pode haver algumas veleidades, mas não há vontade. E a vontade é que governa o mundo.

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Czarina, se estas linhas chegarem às tuas mãos, não faças como Victor Hugo…

o escritor de folhetins
Os olhos “de ressaca” da czarina Alexandra Feodorovna

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1896, há exatos 112 anos.

Czarina, se estas linhas chegarem às tuas mãos, não faças como Victor Hugo, que, recebendo um folheto de Lisboa, respondeu ao autor: “Não sei português, mas com o auxílio do latim e do espanhol, vou lendo o vosso livro…” Não, nem peço que me respondas. Manda traduzi-las na língua de Gogol, que dizem ser tão rica e tão sonora, e em seguida lê. Verás que o beijo que te depositou na mão, em Cherburgo, o presidente da República Francesa, foi aqui objeto de algum debate.

Uns acharam que, para republicano, o ato foi vilania; outros que, para francês, foi galantaria. Uma princesa! Uma senhora! E daí uma conversação longa em que se disseram coisas agressivas e defensivas. Eu, pouco dado a rusgas, limitei-me a pensar comigo que a galantaria não deve ficar sendo um costume somente das cortes. A democracia pode muito bem acomodar-se com a graça; nem consta que Lafayette, marquês do antigo regímen, tivesse deitado a cortesia ao mar quando foi colaborar com Washington.

Olha, czarina, houve tempo em que nessa mesma França, cujo chefe te beijou agora a mão, se fazia grande cabedal de tratar por tu aos outros, para continuar Robespierre e os seus terríveis companheiros. Então um poeta falou em verso, como é uso deles, e concluiu por este, que faz casar a política e as maneiras: Appellons-nous MONSIEUR et soyons CITOYEN. Nós, para não ir mais longe, fizemos a República, sem deportar a excelência das Câmaras. Era costume antigo, não do regímen deposto, mas da sociedade. A excelência veio da mãe-pátria, onde parece que se generalizou ainda mais, não se tratando lá ninguém por outra maneira. Aqui, quando ainda não há familiaridade bastante para o tu e o você, e já a excelência é demasiado cerimoniosa, ficamos no senhor, é um modo indireto; em Portugal, nos casos, apertados, empregam o amigo, que é ainda mais indireto. Tudo para fugir aos vós dos nossos maiores, e que entre nós é a fórmula oficial da correspondência escrita. Em verdade, se o regimento das nossas câmaras tivesse obrigado o tratamento de vós na tribuna, como na correspondência oficial, antes de infringirmos o regimento, teríamos infringido a gramática. É duro de meter na oração a flexão vos do pronome. Tenho visto casos em que a pessoa para desfazer-se logo dela, começa por ela: Vos declaro, Vos comunico, Vos peço. Nem é por outra razão, czarina, que eu te trato por tu, como se faz em poesia.

Voltando ao beijo, admito que há coisas que só podem ser bem entendidas no próprio lugar. Julgadas de longe levam muita vez ao erro. Tu, por exemplo, se lesses a moção da Câmara Municipal do Rio Claro, São Paulo, protestando contra o presidente do Estado, que não a recebeu quando ele ali foi ver a mãe enferma, pode ser que a entendesses mal. A moção aceitou o ato como uma injúria ofensiva e direta ao município, ao povo, a todo o partido republicano, e mandou publicar o protesto e comunicá-lo por cópia a todas as Câmaras Municipais do Estado, ao presidente da República, aos presidentes dos congressos federal e estadual e ao diretório central do partido.

Aparentemente é uma tempestade num copo d’água; mas a moção alega que há da parte do presidente contra o município sentimento de hostilidade já muitas vezes manifestado. Assim sendo, explica-se a recusa do presidente em recebê-la, mas não se explica o ato da Câmara em visitá-lo. Não se devem fazer visitas a desafetos; o menos que acontece é não achá-los em casa. Quando, porém, a Câmara, esquecendo ressentimentos legítimos, quisesse levar o ramo de oliveira ao chefe do Estado, em benefício comum, se esse não aceitasse as pazes, o melhor seria calar e sair. A divulgação do caso à cidade e ao mundo e a ameaça de pronta repulsa faz recear um estado de guerra, quando todos os municípios desejam concórdia a sossego. Há já tantas questões graves, sem contar econômica e a financeira, que a questão do Rio Claro bem podia não ter nascido, ou ficar no “tapete da discussão” como se usa no parlamento.

Disse que entenderias mal a moção; emendo-me, não entenderias absolutamente, pois nunca jamais uma Câmara Municipal russa falaria daquele modo. A Câmara do Rio Claro, se fosse moscovita, ou voltaria a visitar o czar, quando ele estivesse em casa, ou far-se-ia niilista. Donde podes concluir a vantagem das moções, e a razão do uso imoderado que fazemos delas: é uma válvula. Enquanto a gente propõe moções não trama conspirações, e estas duas palavras que rimam no papel não rimam na política.

O que é curioso é que nós, que não fazemos política, estejamos ocupados, eu em falar dela, tu em ouvi-la. O melhor é acabar e dizer-te adeus. Adeus, czarina; se cá vieres um dia de visita, pode ser que não aches as ruas limpas, mas os corações estarão limpíssimos. O presidente da República, se não for algum dos que censuraram agora o Sr. Faure, beijar-te-á a mão, sem perder o aprumo da liberdade. A Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico oferecer-te-á um bond especial para percorreres as suas linhas, com as tuas damas e escudeiros. Esta companhia completou anteontem vinte e oito anos de existência. Ainda me recordo da experiência dos carros na véspera da inauguração. Ninguém vira nunca semelhantes veículos. Toda gente correu a eles, e a linha, aberta até o Largo do Machado, continuou apressadamente aos seus limites. Nos primeiros dias os carros eram fechados; apareceram abertos para os fumantes, mas dentro de pouco estavam estes sós em campo; as senhoras preferiram ir entre dois charutos, a ir cara a cara com pessoas que não fumassem. Outras companhias vieram a servir outros bairros. Ônibus e diligências foram aposentados nas cocheiras e vendidos para o fogo. Que mudança em vinte e oito anos!

Uma coisa não entenderás, ainda que a transfiram à língua de Gogol, são os dois avisos postos pela Companhia do Jardim Botânico em um ou mais dos seus carros. Também eu não as entendi logo; mas, por obtuso que um homem seja, desde que teime, decifra as mais escuras charadas deste mundo. Por que não sucederá o mesmo a uma senhora? Manda traduzir já e vê.

O primeiro aviso é este: A assinatura evita o engano nos trocos. Compreende-se logo que a assinatura é a dos bilhetes de passagem. Quer dizer que, comprando-se uma coleção de bilhetes, em vez de pagar com dinheiro cada vez que se entra no carro, não se perde nada nos trocos que dão os condutores; logo, os condutores enganam-se; logo, há um melhor meio que reprimir os condutores ou despedi-los, como se faz nas casas comerciais e nos bancos, é vender coleções de bilhetes impressos. Nem se tira o pão a distraídos, nem se alivia o triste passageiro de uma parte do bilhete de dez ou mais tostões.

O segundo aviso é uma pequena alteração do primeiro, e diz assim: A assinatura evita o esquecimento nos trocos. Se aqui vem esquecimento em vez de engano, é que o passageiro em muitos casos perde o dinheiro, não já em parte, mas totalmente, por aquela outra causa mais grave. Não só o esquecimento é provável, mas até pode ser certo e constante, se o condutor padecer de moléstia que oblitere a memória, e não há meio de evitar que este fique com o resto do dinheiro senão oferecendo a companhia os seus bilhetes de assinatura. Outrossim, o passageiro passa a ser o melhor fiscal da companhia, e o seu ordenado é que deixa de ficar, por engano ou esquecimento, na algibeira do condutor. Tais me parecem ser os dois avisos; mas, se me disserem que eles contêm uma profecia relativa aos destinos da Turquia, não recuso a explicação. Tudo é possível em matéria de epigrafia. Adeus, czarina!

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