Entre tantos sucessos desta semana, que valeu por quatro, um houve que principalmente me encheu o espírito. Foi a proclamação do ex-governador Hercílio, ao deixar o poder de algumas horas…

Rua do Ouvidor, 1890

Rua do Ouvidor, 1890

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 13 de agosto de 1893.

Entre tantos sucessos desta semana, que valeu por quatro, um houve que principalmente me encheu o espírito. Foi a proclamação do ex-governador Hercílio, ao deixar o poder de algumas horas.

Talvez o leitor nem saiba dela, tão certo é que os vencidos não merecem compaixão. Eu também não a li; não sei se é longa ou breve, nem em que língua é escrita, dado que os revolucionários fossem alemães, como disseram telegramas, — ou teuto-brasileiros, fórmula achada no Rio Grande do Sul para exprimir a dupla origem de alguns concidadãos nossos. Também ignoro se a proclamação ataca o poder federal, como fez um telegrama do próprio ex-governador. Propriamente, a minha questão não é política. A parte política só me ocupa, quando do ato ou do fato sai alguma psicologia interessante.

Ora, a proclamação do Sr. Hercílio, quando deixou o poder, é um documento de alta significação psicológica. Não a conheço, mas vi notícia telegráfica de que saiu impressa em cetim azul com letras de ouro.

À primeira vista parece nada; os amigos e correligionários é que naturalmente tiveram a idéia de pôr em relevo as palavras do chefe, dando-lhes esse veículo de ouro e cetim. Penetrando, porém, com olhos mais sagazes, compreende-se que essa preocupação da forma é a manifestação inconsciente da garridice da nossa alma. Podemos matar ou ferir. Naquele mesmo tumulto, pereceu um médico, ainda não se sabe com bala de quem, porque ambos os lados repelem a autoria do tiro. Mas, cessadas as hostilidades, voltamos à graça e ao adorno. Papel preto, letras amarelas, fazendo lembrar o aspecto dos caixões mortuários, tal devia ser a proclamação de um vencido. Poeta que a inventasse, recorreria a lâminas de aço com letras de bronze. Tudo filho da idéia que conjuga o desbarato e a melancolia — ou, quando muito, a ameaça.

A generalidade dos homens adotou, em vez disso, o simples papel branco e letra preta. Os espíritos garridos, porém, não cedem do enfeite, e, quando tudo parece que devia estar lívido, está cor de ouro.

Concluamos que há uma força íntima que nos impele a fazer de uma calamidade uma gravata, e de um tiro mortal um ósculo comprido. Não; nós não levamos a paixão política ao ponto a que a levou agora a gente do Rosário, província argentina, onde a polícia era defendida das sotéias das casas pelos bombeiros e pelos presos.

Quando a opinião dos homens chega a defender a própria polícia que os encarcerou, é que eles são chegados àquele grau em que uma nação dá de si Brutus. Esmagar a polícia é o impulso natural de todo cidadão capturado; mas trepar nas sotéias para defendê-la a tiro, é coisa que sai do homem para entrar no romano.

Também isso me veio por telegrama; eu quase não leio outra coisa, tanta é a ocupação do meu tempo. Alguma notícia que vi, como o arrombamento de um cartório e o desaparecimento de uns autos, é por ouvi-la contar. Essa mesma do cartório não a pude ouvir bem. Chovia e ventava muito, o bond tinha as cortinas alagadas; as cortinas, longe de serem de oleado, eram de pano de algodão, que se encharcam mais, posto custem menos dinheiro. Não devia zangar-me com isso, porque o bond era de Botafogo, companhia de que sou acionista, e quanto menos custarem as cortinas, mais valerão os papéis. Entretanto, zanguei-me, porque o pano molhado, tocado pelo vento, batia-me na cara, nas pernas e no chapéu, sem deixar-me ouvir o lance dos autos e do cartório. Só depois de apeado e recolhido é que recobrei a alegria. Com efeito tinha estragado o chapéu; mas chapéu não rende, a ação rende.

Lembro-me que, quando entrei na rua Gonçalves Dias, ia chuviscando e ainda fui ao fim da rua do Senador Dantas para achar lugar em bond de Botafogo.

Mandei ao diabo a idéia de retirar o ponto dos bonds, da rua Gonçalves Dias; mas outra sensação expeliu a primeira. Quando descansei da viagem, em casa, lembrei-me que esse dia era justamente o aniversário natalício do nosso poeta nacional. Corri a enfeitar de flores o seu retrato, e recitei algumas estrofes, como na missa se faz com pedaço do Evangelho. Esta semana é, aliás, uma semana de poetas. Nela nasceram também o Magalhães, poeta e diplomata, e S. Carlos, poeta e frade. Vi Gonçalves Dias duas vezes. Da primeira adivinhei quem era, não sentindo mais que o passo rápido de um homenzinho pequenino. Era ele, era o autor da Canção do Exílio, que se soletrava desde os dez anos…


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Vamos adiante.

Vamos à rua do Ouvidor; é um passo. Desta rua ao Diário de Notícias é ainda menos. Ora, foi no Diário de Notícias que eu li uma defesa do alargamento da dita rua do Ouvidor, — coisa que eu combateria aqui, se tivesse tempo e espaço. Vós que tendes a cargo o aformoseamento da cidade alargai outras ruas, todas as ruas, mas deixai a do Ouvidor assim mesma — uma viela, como lhe chama o Diário, — um canudo, como lhe chamava Pedro Luiz. Há nela, assim estreitinha, um aspecto e uma sensação de intimidade. É a rua própria do boato. Vá lá correr um boato por avenidas amplas e lavadas de ar. O boato precisa do aconchego, da contigüidade, do ouvido à boca para murmurar depressa e baixinho, e saltar de um lado para outro.

Na rua do Ouvidor, um homem, que está à porta do Laemmert, aperta a mão do outro que fica à porta do Crashley, sem perder o equilíbrio. Pode-se comer um sandwich no Castelões e tomar um cálix de Madeira no Deroché, quase sem sair de casa. O característico desta rua é ser uma espécie de loja única, variada, estreita e comprida.

Depois, é mister contar com a nossa indolência. Se a rua ficar assaz larga para dar passagem a carros, ninguém irá de uma calçada a outra, para ver a senhora que passa, — nem a cor dos seus olhos, nem o bico dos seus sapatos, e onde ficará em tal caso “o culto do belo sexo”, se lhe escassearem os sacerdotes.

Outra prova.

Houve domingo passado o grande prêmio do Derby-Club. Dizem que se apostaram cerca de quatrocentos contos de réis no lugar das corridas. Mais, muito mais, deram as apostas cá em baixo. Uma das vantagens das corridas de cavalos é poder agente apostar nelas sem sair da freguesia.

Faz lembrar os velhos mendigos de Nicolau Tolentino, que, de uma praça de Lis-bons, acompanhavam os exércitos europeus, marchas e contramarchas, ganhavam batalhas, retificavam fronteiras, até que voltavam ao seu ofício, se aparecia alguém:

E tendo dado cidades,

Nos vem pedir uma esmola.

Na Inglaterra, onde o cavalo é uma instituição nacional, quando chega o dia do grande prêmio toda a gente vai às corridas. A própria câmara dos comuns, que não tem folga, seja de gala, seja de tristezas, abala e dá consigo no Derby. Pode ser que, sobre a tarde, como as suas sessões entram pela noite velha, vá aos trabalhos parlamentares; mas não perde a grande festa. Lá, porém, o clima é frio. Que seria aqui esse nobre exercício do cavalo, se, para acompanhar as corridas, fosse preciso ir vê-las? Com certeza, morria. O mesmo acontecerá à rua do Ouvidor, se a fizerdes mais larga.

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