Arquivo da tag: pernambuco

O que mais me encanta na humanidade, é a perfeição…

Voltaire, autor de 'Cândido'

Voltaire, autor de 'Cândido'

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, em 26 de fevereiro de 1893.

O que mais me encanta na humanidade, é a perfeição. Há um imenso conflito de lealdades debaixo do sol. O concerto de louvores entre os homens pode dizer-se que é já música clássica. A maledicência, que foi antigamente uma das pestes da Terra, serve hoje de assunto a comédias fósseis, a romances arcaicos. A dedicação, a generosidade, a justiça, a fidelidade, a bondade, andam a rodo, como aquelas moedas de ouro com que o herói de Voltaire viu os meninos brincarem nas ruas de El-Dorado.

A organização social podia ser dispensada. Entretanto, é prudente conservá-la por algum tempo, como um recreio útil. A invenção de crimes, para serem publicados à maneira de romances, vale bem o dinheiro que se gasta com a segurança e a justiça públicas. Algumas dessas narrativas são demasiado longas e enfadonhas, como a Maria de Macedo, cujo sétimo volume vai adiantado; mas isso mesmo é um benefício. Mostrando aos homens os efeitos de um grande enfado, prova-se-lhes que o tipo de maçante, — ou cacete, como se dizia outrora — é dos piores deste mundo, e impede-se a volta de semelhante flagelo. Uma das boas instituições do século é a falange das coisas perdidas, composta dos antigos gatunos e incumbida de apanhar os relógios e carteiras que os descuidados deixam cair, e restituí-los a seus donos. Tudo efeito de discursos morais.

Posto que inútil, pela ausência de crimes, o júri é ainda uma excelente instituição. Em primeiro lugar, o sacrifício que fazem todos os meses alguns cidadãos em deixarem os seus ofícios e negócios para fingirem de réus, é já um grande exemplo de civismo. O mesmo direi dos jurados. Em segundo lugar, o torneio de palavras a que dá lugar entre advogados, constitui uma boa escola de eloqüência. Os jurados aprendem a responder aos quesitos, para o caso de aparecer algum crime. Às vezes, como sucedeu há dias, enganam-se nas respostas, e mandam um réu para as galés, em vez de o devolverem à família; mas, como são simples ensaios, esse mesmo erro é benefício, para tirar aos homens alguma pontinha de orgulho de sapiência que porventura lhes haja ficado.

Mas a perfeição maior, a perfeição máxima, é a de que nos deu notícia esta semana o cabo submarino. O grão-turco, por ocasião do jubileu do papa, escreveu-lhe uma carta autografada de felicitações acompanhada de presentes de alta valia. Não se pode dizer que sejam cortesias temporais. O papa já não governa, como o sultão da Turquia. A fineza é o chefe espiritual, tão espiritual como o jubileu. Já cismáticos e heréticos tinham feito a mesma coisa; faltava o grão-turco, e já não falta. Alá cumprimentou o Senhor, Maomé a Cristo. Tudo o que era contraste, fez-se harmonia, o oposto ajustou-se ao oposto. Ondas e ondas de sangue custou o conflito de dois livros A cruz e o crescente levaram atrás de si milhares e milhares de homens. Houve cóleras grandes. Houve também grandes e pequenos poetas que cantaram os feitos e os sentimentos evangélicos, ora pela nota marcial, ora pela nota desdenhosa. Um deles dedilhou no alaúde romântico a história daquele sultão que requestava uma cantarina de Granada, e lhe prometia tudo:

Je donnerais sans retour
Mon royaume pour Médine,
Médine pour ton amour.

— Rei sublime, faze-te primeiramente cristão, respondeu a bela Juana; danado é o prazer que uma mulher pode achar nos braços de um incrédulo.

Tempos de Granada! já não é preciso que os sultões se cristianizem. Agora é a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas circulares diplomáticas, os seus gestos ocidentais, que desaprendeu o crê ou morre para celebrar a festa de um grande incrédulo do Corão. Onde vão as guerras de outrora? Onde param os alfanjes tintos de sangue cristão? Naturalmente estão com as espadas tintas de sangue muçulmano. Vivam os vivos!

Eu, se pudesse dar um conselho em tais casos, propunha a emenda do breviário. Glória a Deus nas alturas, deve ficar; mas para que acrescentar: e na terra paz aos homens? A paz aí está, completa, universal, perene. Vede Ubá. Vede que magnífico espetáculo deu ela a todos os municípios do estado mineiro, fazendo uma eleição tranqüila, sem as ruins paixões que corrompem os melhores sentimentos deste mundo. O governador de São Paulo achou-se em casa com cerca de oitenta bombons de dinamite, — excelente produto da indústria local, que conseguiu reduzir um explosivo tão violento a simples doce de confeitaria.

Não falo de Pernambuco, nem do Rio Grande do Sul, nem das amazonas de Daomé, nem das danças de Madri, a que chamaram tumultos, por ignorância do espanhol, nem da Guaratiba, nem de tantas outras partes e artes, que são consolações da nossa humanidade triunfante.

Mas a paz não basta. Falta dizer da alegria. Oh! doce alegria dos corações! Um só exemplo, e dou fim a isto. Aqui está o parecer dos síndicos da Geral, publicado sexta-feira. Diz que entre os nomes da proposta da concordata há alguns jocosos e outros obscenos. O parecer censura esse gênero de literatura concordatária. Escrito com a melancolia que a natureza, para realçar a alegria do século, pôs na alma de todos os síndicos, o parecer não compreende a vida e as suas belas flores. Isto quanto aos nomes jocosos. Pelo que toca aos obscenos, é preciso admitir que, assim como há bocas recatadas, também as há lúbricas. A alegria tem todas as formas, não se há de excluir uma, por não ser igual às outras. A monotonia é a morte. A vida está na variedade.

Demais, que se há de fazer com acionistas que ainda devem de entradas oitenta e cinco mil oitocentos e quarenta e seis contos, cento e sessenta mil e duzentos réis (85.846:160$200)? Rir um pouco, e bater-lhes na barriga. Ora, cada um ri com a boca que tem. Mas a prova de que a obscenidade, como a jocosidade, formas de alegria, são de origem legítima e autêntica, é que todas as firmas foram legalmente reconhecidas. Quando a alegria entra nos cartórios, é que a tristeza fugiu inteiramente deste mundo.

Deixe um comentário

Arquivado em crônica

Não é preciso dizer que estamos na primavera…


Mademoiselle Gachet in her garden at Auvers-sur-Oise, Vincent Van Gogh, 1890

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, em 27 de setembro de 1896, há exatos 112 anos.

Não é preciso dizer que estamos na primavera; começou esta semana… Oh! bons tempos em que os da minha turma repetíamos aquilo do poeta: Primavera, giuventú dell’anno: giuventú, primavera della vita! Alguns iam ao ponto de repetir aquilo outro do lusitano: Ah! não me fujas! Assim nunca o breve tempo fuja da tua formosura! Vai tudo em linha de prosa, que é de prosa o meu tempo, não o teu, leitor de buço e vinte anos; donde resulta a mais trivial das verdades deste mundo, e provavelmente do outro, que o tempo é para cada um de nós o que cada um de nós é para ele. Nem todos terão aquele verdor nonagenário do visconde de Barbacena, que não sei se veio ao mundo no mesmo dia que Victor Hugo, dois anos depois de começado o século, mas em todo caso já então Rome remplaçait Sparte. Quem o vê andar, falar, recordar tudo, examinar, discernir, entrar e sair de um tramway, como os rapazes seus netos, põe de lado estações e idades, e crê que, em suma, tudo isto se reduz a nascer ou não com grande força e conservá-la.

Dizem as gentes européias que a primavera nas suas terras delas entra com muito maior efeito, quase de súbito, fazendo fugir o inverno diante de si. Entre nós, povo lido, a primavera entra pelos almanaques. Não lia almanaque, não lia folhinha, ainda as que servem só de mimo aos assinantes de jornais, que não traga a entrada da primavera no seu dia próprio, fixo e único. Já é alguma coisa; e quando a civilização chegar ao ponto de só dominar neste mundo o espírito do homem, mais valerá ter a primavera encadernada na estante que lá fora na campina, se é que ainda haverá campina. O natural é que os homens se vão estendendo, e as casas com eles, e as ruas e os teatros e as instituições, e todo o mais aparelho da vida social. A terra será pequena, a gente prolífica, a vida um salão, o mundo um gabinete de leitura.

Não te aflijas se a estação das flores não entra aqui como por outras partes; aqui é eterna. A terra vale o que ainda agora nos disse de Pernambuco o Sr. Studebaker, um dos membros da comissão americana, que há pouco nos deixou. A carta desse cavalheiro é um documento que devia estar diante dos olhos de cada um de nós; não dirá nada novo, mas é um testemunho pessoal e americano. Diz ela que nós podemos produzir tudo quanto nasce da terra… mas temos entre nós homens perniciosos, tornando-se necessário que os íntegros se dediquem à causa do bem. Creio em ambas as coisas; mas toda a nossa dificuldade vem de não sabermos exatamente quais são os perniciosos nem quais são os íntegros. Vimos ainda agora em Sergipe que os perniciosos são dois, o padre Campos e o padre Dantas, e que os íntegros não são outros. De onde resulta uma anistia em favor do padre Campos.

Também recomenda braços o nosso hóspede, braços e temor a Deus. O segundo é preocupação anglo-saxônia, que não entra fundo em almas latinas ou alatinadas. Quanto aos braços, era eu pequeno, e, apesar da vasta escravatura que havia, já se chorava por eles. Muitos tinham sido já chamados e fixados. Vieram depois mais e mais, até que vieram muitos e muitos. Os alemães enchiam o sul; os italianos estão chegando aos magotes, e se a última questão afrouxou um pouco a importação, não tarda que esta continue e a questão acabe. É o que se espera do ministro novo, Sr. De Martino. Que há já muito italiano, é verdade; mas esta raça é fácil de ser assimilada, e trabalha e prospera. Tive amigos que vinham dela, e tu também, e aí os há que não vêm de outra origem.

Agora mesmo ouço cantar um pássaro, e, se me não engano, canta italiano. Também os há que cantam alemão; Lulu Junior acha que a música desta segunda casta é melhor que a daquela. Eu creio que todos os pássaros são pássaros e todos os cantos são bonitos, contanto que não sejam feios. O que não quero é que se negue ao alemão o direito de ser cantado. A língua que ora ouço ao pássaro é, como digo, a italiana, e por pouco parece-me Carlos Gomes. Eis aí um que ligou bem os dois países, as duas histórias e já agora as duas saudades. Partiu ontem um vapor armado em guerra para conduzi-lo até cá. Viva o Pará, que rejeitou a idéia de o mandar em navio mercante, e pôs por condição que ou viria com todas as honras da Arte e da Morte, ou ficaria lá com ele. Não ficaria mal à beira do Amazonas o cantor do nosso Brasil, nem o Pará merece menos que qualquer outra parte; ao contrário, a terra que serviu de berço a Carlos Gomes não teve para ele mais carinhos que essa que lhe serviu de leito mortuário, e, em todo caso, teve-os na prosperidade. Dá-los à dor é maior.

Estávamos… Creio que estávamos nos braços italianos, não os que amam e fazem amar, mas os que lavram a terra; foram eles que me trouxeram aqui, a propósito do industrial americano, que lá vai. Tem-se dito que há muita aglomeração italiana em S. Paulo, o mesmo que se havia dito em relação aos alemães nas colônias do Sul. Há destas onde a língua do país não é falada nem ensinada, nem sabida, ou mal sabida por alguns rudimentos escassos que os próprios mestres alemães dão aos seus meninos, a fim de que de todo em todo não ignorem o meio de pedir fogo a alguém ou bradar por socorro. A culpa não é deles, mas nossa; e, se tal sucede em S. Paulo, a culpa é de S. Paulo.

Há tempos falou-se no mal das grandes aglomerações de uma só raça. Seja-me lícito citar um nome que os acontecimentos levaram, como levam outras coisas mais que nomes, o de Rodrigo Silva, que foi aqui ministro da agricultura. Este ministro tinha por muito recomendado aos encarregados da colonização que intercalassem as raças, não só umas com as outras, mas todas com a do país, a fim de impedir o predomínio exclusivo de nenhuma. Circulares que o vento leva; a política era boa e fácil e dava ganho a todos, aos de fora como aos de dentro. Mas as circulares são como as ilusões; verdejam algum tempo, amarelecem e caem logo; depois vêm outras…

Deixemos, porém, essa matéria mais de artigo de fundo que de crônica, e tornemos ao céu azul, ao sol claro, à temperatura fresca. Não há desfalque pequeno nem grande que resista ao efeito da bela catadura da natureza. Que vale um desfalque ao pé da saúde, que é a vida integral, a perfeita contabilidade humana? Depois, a saúde sente-se igualmente, não há duas opiniões sobre ela; o desfalque, sem negar que é alguma coisa que falta (geralmente dinheiro), não há dúvida que é idéia filha da civilização, e a civilização, como dizia um filósofo amador do meu tempo, é sinônimo de corrupção. E há sempre duas opiniões sobre o desfalque, — a do desfalcado e a outra.

Que haja falta de dinheiro em alguma parte, é natural. Esta coisa que uns americanos querem deva ter por padrão tão somente o ouro, outros a prata igualmente, ainda se não acostumou tanto aos homens que não se esconda deles algumas vezes, e não desapareça como as simples bolas nas mãos de um prestidigitador. Dinheiro por ser dinheiro não deixa de ter vergonha; o pudor comunica-se das mãos à moeda, e o gesto mais certo do pudor é fugir aos olhos estranhos, — ou, pelo menos às mãos, como na ilha dos Amores. Daí os desfalques; fica só o algarismo escrito, a moeda esvai-se; tais as ninfas da ilha correm nuas:

…………….. aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando.

Não importa; os que teimarem hão de acabar como o cavaleiro do poeta, que afinal pôde deitar os braços a uma das ninfas esquivas. E depois, ainda que não se alcance nenhuma, a terra é fértil, a população grande, e a gente nova aí vem com os seus braços para trabalhar e colher, não menos que para amar e engendrar. Tudo aqui é calor de primavera; a América, bem considerada, é a primavera da história. Há uma diferença entre esta e a do norte, é que por ora não brigamos por ouro ou prata, Bryan ou McKinley; o papel nos basta e sobra.

Deixe um comentário

Arquivado em crônica