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Não se diga que a febre amarela tem medo ao saneamento; mais depressa o saneamento terá medo à febre amarela…

Morte de Carlos Gomes
Morte de Carlos Gomes, inspirada num quadro de De Angelis pertencente à Prefeitura de Belém

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1896, há exatos 112 anos.

Não se diga que a febre amarela tem medo ao saneamento; mais depressa o saneamento terá medo à febre amarela. Em vez de o temer, pôs a ponta da orelha de fora esta semana, e se a tinha posto antes, não sei; eu não sou leitor assíduo de estatísticas. Não nego o que valem as lições que dão, e a necessidade que há delas para conhecer a vida e a economia dos Estados; mas entre negar e adorar há um meio termo, que é a religião de muita gente.

A ponta da orelha que eu vi, foi um caso único do dia 15, publicado ontem, 17. Não tem valor, comparado naturalmente a outras doenças; mal tal é a má fama daquela perversa, que um só óbito basta para assustar mais que um obituário inteiro de várias enfermidades, ou até de uma só. O vulgo não reflete que, bem observadas as coisas, ela nunca saiu daqui; uns anos cochila e cabeceia, outros dorme a sono solto, e, se acorda, é para esfregar os olhos e tornar a dormir; há, porém, os anos de vigília pura, em que não faz mais que entrar pelas casas alheias e obrigar a gente a dançar uma valsa triste, muitas vezes a última.

Desta vez pode ser, e é bom esperar que seja uma espécie de memento, para que as vítimas possíveis se acautelem do mal, indo vê-lo de longe. Também pode não passar disto, um caso em outubro, dois em novembro, três e quatro em outros meses, até acabar o verão. Querem, porém, alguns que, pouca ou muita, enquanto a tivermos em casa, não há relatórios que a matem. As mais hábeis comissões não lhe tiram a alma. Há quem lhe tenha ouvido dizer: — Podem citar para aí os autores que quiserem, combater ou apoiar as opiniões todas deste mundo e do outro, enquanto não passarem da biblioteca à rua e da palavra à ação, é o mesmo que se dormissem. Ora, a ação de entestar com o mal, atacá-lo e vencê-lo, por meio de um trabalho longo, constante, forte e sistemático, é tão comprida que faz doer o espírito antes de cansar o braço, e é preciso tê-los ambos de ferro. Se a agregada nossa confia nisso, é mister que perca a fé.

Nada do que fica aí é novo; a febre é velha, velhas as lástimas, velhíssimos os esforços para destruir o mal, e têm a mesma idade os adiamentos de tais esforços. Quando aqui apareceu o cólera, há muitos anos, — não por ocasião do ministro Mamoré, que o mandou embora, — falo da primeira vez, o destroço foi terrível, e a doença teria feito a lei da abolição por um o processo radical, se não fosse o judeu errante que é que não para nunca, e tão depressa entra como sai. A amarela é caseira, gosta de cômodos próprios e não exige que sejam limpos nem largos; a questão é que a deixem ficar. Uma vez que a deixem ficar, podem discuti-la, examiná-la, revirá-la, redigir relatórios sobre relatórios, oficiar, inquirir, citar; words, words, words, diz ela para também citar alguma coisa. E não saindo de Hamlet: “Se o sol pode fazer nascer bichos em cachorro morto”… Não serão cães mortos que lhe faltem. Quanto ao lençol de água, vê-lo-emos feito um formidável lençol de papel. Papers, papers, papers.

Os italianos não crêem no mal. Assim o dizem as estatísticas, em que eu, como acima confessei, piamente, acredito sem as freqüentar muito. Portugueses e alemães vem depois deles, muito abaixo, e ainda mais abaixo franceses, russos, belgas, ingleses e outros. Quem crê deveras na febre é o chim; no ano passado não entrou nenhum, dizem as estatísticas; mas por que notam elas esta ausência do chim, e não citam a do abexim? Eis aí um mistério, que não será o primeiro nem o último das estatísticas. Conquanto um artigo de folha genovesa diga que a colônia italiana acabará por absorver a nacionalidade brasileira, eu não dou fé a tais prognósticos; mas quando italianos nos absorvessem, seriam outros, não seriam já os mesmos. Há aí na praça um napolitano grave, influente, girando com capitais grossos, velho como os italianos velhos, que orçam todos pela dura velhice de Crispi e de Farani. Pois esse homem vi-o eu muita vez tocar realejo na rua, simples napolitano, recebendo no chapéu o que então se pagava, que era um reles vintém ou dois. Tinha eu sete para oito anos; façam a conta. Vão perguntar-lhe agora se quer ser outra coisa mais que brasileiro, se não da gema, ao menos da clara.

A propósito de realejo napolitano, li que em uma das levas de Genova para cá veio como agricultor um barítono. Ele, e um mestre de música; perguntando-se-lhes o que vinham fazer ao Brasil, parece que responderam ser este país grande e cá enriquecerem todos: “Por que não enriqueceremos nós?” concluíram. Não há que censurar. A voz pode levar tão longe como a manivela. Demais, a terra é de música e a música é de todas as artes aquela que mais nos fala à alma nacional. Um barítono, com boa voz e arte castigada, pode muito bem enriquecer, — ou, pelo menos, viver à larga. Tanto ou mais ainda um tenor e um soprano. Nem só de café vive o homem, mas também da palavra de Verdi e de Carlos Gomes.

Dado, porém, que vivamos só de café, e não devamos cuidar de mais nada que de cultivar esta preciosa rubiácea, ainda assim o barítono pode muito bem ser aceito e colocado. A fábula reza de Orfeu, que levava os animais com a simples lira que os gregos lhe deram. Por que não há de fazer a voz humana a mesma coisa às plantas? A semente lançada à terra escutará as melodias e porá o grelo de fora; com elas crescerá o talo, bracejarão as flores e abotoarão os grãos, que mais tarde havemos de exportar e de beber também.

Seja milagre, mas é natural que a terra de Carlos Gomes neste particular faz milagres. O Rio de Janeiro recebeu os restos do nosso maestro com as honras merecidas. S. Paulo vai guardá-lo como um dos mais célebres de seus filhos. O Pará, que o viu morrer, aqui o mandou, depois das mais vivas provas de que a unidade nacional existe.

Il Guarani, ópera de Carlos GomesAnteontem, fui ao arsenal de guerra ver sair o féretro do autor do Guarani e da Fosca, para ser conduzido à igreja de S. Francisco de Paula e ouvi a marcha fúnebre de Chopin que a banda militar tocava; não pude deixar de recordar os longos anos passados, quando o préstito era outro, e saía de outro lugar, — o teatro Provisório que lá vai — e descia pela rua da Constituição. Era de noite; o maestro tinha estreado, sem Itália nem Guarani mas eram tais as esperanças dadas, e tão jovens e ardentes éramos todos os que por ali íamos aclamando a estrela nascente. A música era a dos nossos peitos, podeis adivinhar se fúnebre ou festiva. Perguntai aos ecos da praça Tiradentes, — naquele tempo Constituição e vulgarmente Rocio Grande, — perguntai o que eles ouviram, e se são ecos fiéis dirão coisas belas e fortes. O meu querido Salvador que ia à testa da legião recordá-las-á com saudade, quando ler a notícia das honras últimas aqui dadas ao maestro de Campinas.

Realmente, a diferença foi grande; uma vida inteira enchia o espaço decorrido entre as duas datas, e as melodias de Gomes estavam agora na memória de todos. Muitos que as repetiam consigo não eram ainda nascidos por aquele tempo; os que eram moços, como esses são agora, viram branquear os cabelos e entraram no préstito com a alma igualmente encanecida; a evocação do pretérito os terá remoçado. Outros, enfim, nem moços nem velhos, ali não compareceram, por terem sido eliminados antes. Não falo dos que estão ainda em gérmen, e repetirão mais tarde as composições de Gomes. A matéria é ótima para uma dissertação longa; o lugar é que o não é, nem o dia.

Fiquemos aqui; ou antes, voltemos à Itália e aos seus cantores. Que venham, eles, barítonos e tenores, e nos trarão, além da música que este povo ama sobre todas as coisas, as próprias melodias do nosso maestro, e assim incluiremos um artigo no acordo que ela está celebrando com o governo brasileiro, porventura mais vivo e não disputado. Também ela amou a Carlos Gomes, não por patriotismo, que não era caso disso, mas por arte pura.

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Tannhäuser e bonds elétricos


Os bondes elétricos no Rio de Janeiro

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, em 2 de outubro de 1892, há exatos 116 anos.

Tannhäuser e bonds elétricos. Temos finalmente na Terra essas grandes novidades. O empresário do Teatro Lírico fez-nos o favor de dar a famosa ópera de Wagner, enquanto a Companhia de Botafogo tomou a peito transportar-nos mais depressa. Cairão de uma vez o burro e Verdi? Tudo depende das circunstâncias.

Já a esta hora algumas das pessoas que me lêem, sabem o que é a grande ópera. Nem todas; há sempre um grande número de ouvintes que farão ao grande maestro a honra de não perceber tudo desde logo, e entendê-lo melhor à segunda, e de vez à terceira ou quarta execução. Mas não faltam ouvidos acostumados ao seu ofício, que distinguirão na mesma noite o belo do sublime, e o sublime do fraco.

Eu, se lá fosse, não ia em jejum. Pegava de algumas opiniões sólidas e francesas e metia-as na cabeça com facilidade; só não me valeria das muletas do bom Larousse, se ele não as tivesse em casa; mas havia de tê-las. Cai aqui, cai acolá, faria uma opinião prévia, e à noite iria ouvir a grande partitura do mestre. Um amigo:

— Afinal temos o Tannhäuser; eu conheço um trecho, que ouvi há tempos…

— Eu não conheço nada, e quer que lhe diga? É melhor assim. Faço de conta que assisto à primeira representação que se deu no mundo. Tudo novo.

— O que eu ouvi, é soberbo.

— Creio; mas não me diga nada, deixe-me virgem de opiniões. Quero julgar por mim, mal ou bem…

E iria sentar-me e esperar, um tanto nervoso, irrequieto, sem atinar com o binóculo para a revista dos camarotes. Talvez nem levasse binóculo; diria que as grandes solenidades artísticas devem ser estremes de quaisquer outras preocupações humanas. A arte é uma religião. O gênio é o sumo sacerdote. Em vão, Amália, posta no camarote, em frente à mãe, lançaria os olhos para mim, assustada com a minha indiferença e perguntando a si mesma que me teria feito. Eu, teso, espero que as portas do templo se abram, que as harmonias do Céu me chamem aos pés do divino mestre; não sei de Amália não quero saber dos seus olhos de turquesa.

Era assim que eu ouviria o Tannhäuser. Nos intervalos, visita aos camarotes e crítica. Aquela entrada dos fagotes, lembra-se? Admirável! Os coros, o duo, os violinos, oh! o trabalho dos violinos que coisa adorável, com aquele motivo obrigado: la la la tra la, la, la, tra la la… Há neste ato inspirações que são, com certeza, as maiores do século. De resto, os próprios franceses emendaram a mão, dando a Wagner o preito que lhe cabe, como um criador genial… As senhoras ouvem-me encantadas; a linda Amália sente-se honrada com a indiferença de há pouco, vendo que ela e a arte são o meu culto único.

Ao fundo, o pai e um homem de suíças falam da fusão do Banco do Brasil com o da República. O irmão, encostado à divisão do camarote, conversa com uma dama vizinha, casada de fresco, ombros magníficos. Que tenho eu com ombros, nem com bancos? la la la, tra la la la, tra la la

Feitas as despedidas, passaria a outro camarote, para continuar a minha crítica. Dois homens, sempre ao fundo, conversam baixo, um recitando os versos de Garrett sobre a Guerra das Duas Rosas, o outro esperando a aplicação. A aplicação é a Câmara Municipal de São Paulo, que acaba de tomar posse solene, com assistência do presidente e dos secretários do Estado… Interrupção do segundo: “Pode comparar-se o caso dos dois secretários à conciliação que o poeta fez das duas rosas?” Explicação do primeiro: “Não; refiro-me à inauguração que a Câmara fez dos retratos de Deodoro e Benjamin Constant. Uniu os dois rivais póstumos em uma só comemoração, e a história ou a lenda que faça o resto.”

Não espero pelo resto; falo às senhoras no duo e na entrada dos fagotes. Bela entrada de fagotes. Os coros admiráveis, e o trabalho dos violinos simplesmente esplêndido. Hão de ter notado que a música reproduz perfeitamente a lenda, como o espelho a figura; prendem-se ambas em uma só inspiração genial. Aquele motivo obrigado dos violinos é a mais bela inspiração que tenho ouvido: la la la tra la la la tra

Terceiro camarote, violinos, fagotes, coros e o duo. Pormenores técnicos. Ao fundo, dois homens, que falam de um congresso psicológico em Chicago, dizem que os nossos espíritas vão ter ocasião de aparecer, porque o convite estende-se a eles. Tratar-se-á não só dos fenômenos psicofísicos, como sejam as pancadas, as oscilações em mesas, a escrita, e outras manifestações espíritas, como ainda da questão da vida futura. Um dos interlocutores declara que os únicos espíritas que conhece, são dois, moram ao pé dele e já não pertencem a este mundo; estão nos intermúndios de Epicuro. Andam cá os corpos, por efeito do movimento que traziam quando habitados pelos espíritos, como aqueles astros cuja luz ainda vemos hoje, estando apagados há muitos séculos…

A orquestra chama a postos, sobe o pano, assisto ao ato, e faço a mesma peregrinação no intervalo; mudo só as citações, mas a crítica é sempre verdadeira. Ouço os mesmos homens, ao fundo, conversando sobre coisas alheias ao Wagner. Eu, entregue à crítica musical, não dou pelas rusgas da intendência, não atendo às candidaturas municipais agarradas aos eleitores, não dou por nada que não seja a grande ópera. E sento-me, recordo prontamente o que li sobre o ato, oh! um ato esplêndido!

Fim do espetáculo. Corro a encontrar-me com a família de Amália, para acompanhá-la à carruagem. Dou o braço à mãe e crítico o último ato, depois resumo a crítica dos outros atos. Elas e o pai entram na carruagem; despedidas à portinhola; aperto a bela mão da minha querida Amália… Pormenores técnicos.

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