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Estudemos; é o melhor conselho que posso dar ao leitor amigo; estudemos…

A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632, de Rembrandt
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632, de Rembrandt

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 13 de outubro de 1895, há exatos 113 anos.

Estudemos; é o melhor conselho que posso dar ao leitor amigo; estudemos. É domingo; não tens que ir ao trabalho. Já ouviste a tua missa, apostaste na vaca (antigo) e almoçaste entre a esposa e os pequenos. Em vez de perder o tempo em alguma leitura frívola, estudemos.

Temos duas lições e podíamos ter sete ou oito; mas eu não sou professor que empanzine a estudantes de boa vontade. Demais, há lições tão obvias que não vale a pena encher delas um parágrafo. Por exemplo, a declaração que fez o Sr. deputado Érico Coelho, esta semana, ao apresentar o projeto do monopólio do café. Declarou S. Ex., incidentemente, que já na véspera fora solicitado para, no caso de passar o monopólio, arranjar alguns empregos. Os deputados riram, mas deviam chorar, pois naturalmente não lhes acontece outra coisa com ou sem projetos.

A confissão do Sr. Érico Coelho faz lembrar o que sucedeu com Lamartine, chefe do governo revolucionário de 1848. Um cozinheiro foi empenhar-se com um deputado para empregá-lo em casa de Lamartine, “presidente da República”, disse o homem. — “Mas ele ainda não é presidente”, observou o deputado. Ao que retorquiu o cozinheiro que, se ainda não era, havia de se-lo, e devia ir já tratando da cozinha. Cozinheiros do monopólio de café, se advertísseis que Lamartine não foi eleito, mas outro, consideraríeis que o mesmo pode suceder ao monopólio de café. Quando não seja o mesmo, e a lei passe, é provável que passe daqui a um ou dois anos. Uma lei destas pede longos estudos, longos cálculos, longas estatísticas. O melhor é continuardes a cozinha das casas particulares.

A primeira das nossas duas lições refere-se não propriamente ao italiano que trepou à estátua de Pedro I e lá de cima arengou ao povo, mas às circunstâncias do caso. Ninguém sabe o que ele disse, por falar na língua materna, e nós só entendemos italiano por musica. O que sabemos, nos que lemos a notícia, é que, apesar da hora (dez e meia da noite) mais de quatrocentas pessoas se ajuntaram logo na praça Tiradentes, e intimaram ao homem que descesse. A ele acontecia-lhe o mesmo que aos de baixo; não entendia a língua. Vários planos surdiram para fazei-o desmontar o cavalo, — pedradas, um tiro, o corpo de bombeiros, mas nenhum foi adotado, e o tempo ia passando. Afinal um sargento do exercito e uma praça de polícia treparam à estatua, e, sem violência, com boas maneiras e muitas cautelas, desceram o pobre doido.

Ora, enquanto ocorria tudo isto, e as idéias voavam de todos os lados, alguns propuseram o alvitre de linchar o homem; e, com efeito, tão depressa ele pousou no chão, ergueram-se brados no sentido daquele julgamento sumário e definitivo. Outros, porém, opuseram-se, e o projeto não teve piores conseqüências.

Este é o ponto da lição. Aqui temos um grupo de pessoas, todas as quais, particularmente, repeliriam com horror a idéia de linchar a alguém, antes defenderiam a vítima. Juntas, porém, estavam dispostas a linchar o homem da estátua. Que o contágio da idéia é que produzia esse acordo de tantos, é coisa natural e sabida. Aquilo que não nasce em trinta cabeças separadas, brota em todas elas, uma vez reunidas, conforme a ocasião e as circunstâncias. Motivos diversos sem excluir o sentimento da justiça e a indignação do bem, podem dar azo a ações dessas, coletivas e sangrentas. Começo a distrair no sermão. Vamos à questão principal.

A principal questão, no caso da estátua, é o abismo entre o ato e a pena. O homem não tinha cometido nenhum crime público nem particular. Subiu ao cavalo de bronze, no que fez muito mal, devia respeitar o monumento; mas, enfim, não era delito de sangue que pedisse sangue. A probabilidade de ser doido podia não acudir a todos os espíritos, excitados pelo atrevimento do sujeito; se pudesse acudir, todos rogariam antes ao céu que ele fosse descido sem quebrar os ossos, a fim de que, recolhido novamente ao Hospício dos Alienados, recebesse segunda cura, tendo saído de lá curado, três ou quatro dias antes.

Esse contraste é que merece particular atenção. A familiaridade com a morte é bela, nos grandes momentos, e pode ser grandiosa, além de necessária. Mas, aplicada aos eventos miúdos, perde a graça natural e o poder cívico, para se converter em derivação de maus humores. É reviver a prática dos médicos de outro tempo, que a tudo aplicavam sanguessugas e sangrias. Quem nunca esteve com o braço estendido, à espera que as bichas caíssem de fartas, e não viu esguichá-las ali mesmo para lhes tirar o sangue que acabavam de sugar, não sabe o que era a medicina velha. Não havia que dizer, se era necessária; mas o uso vulgarizou-se tanto que o mau médico antes de atinar com a doença, mandava ao enfermo esse viático aborrecido. Às vezes, o mal era um defluxo. Que é a loucura senão uma supressão da transpiração do espírito?

A segunda lição que devemos ou deves estudar é a que se segue.

Um gatuno furtou diversas jóias e quatrocentos mil réis. O Sr. Noêmio da Silveira, delegado da 7. circunscrição urbana, moço inteligente e atilado, descobriu o gatuno e o furto. Até aqui tudo é banal. O que não é banal, o que nos abre uma larga janela sobre a alma humana, o que nos põe diante de um fenômeno de alta psicologia, é que o gatuno tão depressa furtou os quatrocentos mil réis como os foi depositar na caixa econômica. Medita bem, não me leias como os que tem pressa de ir apanhar o bond; lê e reflete. Como é que a mesma consciência pode simultaneamente negar e afirmar a propriedade? Roubar e gastar está bem; mas pegar do roubo e ir levai-o aonde os homens de ordem, os pais de família, as senhoras trabalhadeiras levam os saldos do salário e os lucros adventícios, eis aí o que me parece extraordinário. Não me digas que há viciosas que também vão à caixa econômica, nem que os bancos recebem dinheiros duvidosos. Ofício é ofício, e eu trato aqui do puro furto.

Assim é que, o empregado da caixa, vendo esse homem ir frequentemente levar uma quantia, adquire a certeza de ser pessoa honesta e poupada, e quando for para o céu, e o vir lá chegar depois, testemunhará em favor dele ante S. Pedro. Ao contrário, se lá estiver algum dos seus roubados, dirá que é um simples ratoneiro. O porteiro do céu, que negou três vezes a Cristo e mil vezes se arrependeu, concluirá que, se o. homem negou a propriedade por um lado, afirmou-a por outro, o que equivale a um arrependimento, e metê-lo-á onde estivessem as Madalenas de ambos os sexos.

Se eu houvesse de definir a alma humana, em vista da dupla operação a que aludo, diria que ela é uma casa de pensão. Cada quarto abriga um vício ou uma virtude. Os bons são aqueles em que os vícios dormem sempre e as virtudes velam e os maus… Adivinhaste o resto; poupas-me o trabalho de concluir a lição.

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A sociedade atual não é decerto compassiva

Machado de Assis e a internet

A sociedade atual não é decerto compassiva, não acolhe o talento como deve fazê-lo. Compreendam-nos! Nós não somos inimigos encarniçados do progresso material. Chateaubriand o  disse: “Quando se aperfeiçoar o vapor, quando unido ao telégrafo tiver feito desaparecer as distâncias, não hão de ser só as mercadorias que hão de viajar de um lado ao outro do globo, com a rapidez de um relâmpago; hão de ser também as idéias”. Este pensamento daquele restaurador do cristianismo — é justamente o nosso.

(Trecho de “O passado, o presente e o futuro da Literatura”, publicado na Marmota Fluminense, de 9 a 23 abril 1858).

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