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Toda esta semana foi de amores…

O nascimento de Vênus, 1483, Sandro Botticelli
O nascimento de Vênus, 1483, Sandro Botticelli

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 21 de outubro de 1894, há exatos 114 anos.

Toda esta semana foi de amores. A Gazeta deu-nos o capítulo exotérico do anel de Vênus desenhado a traço grosso na mão aberta do costume. Da Bahia veio a triste notícia de um assassinato por amor, um cadáver de moça que apareceu, sem cabeça nem vestidos. Aqui foi envenenada uma dama. Julgou-se o processo do bígamo Louzada. Enfim, o intendente municipal Dr. Capelli fundamentou uma lei regulando a prostituição pública, — “a vaga Vênus”, diria um finado amigo meu, velho dado a clássicos.

Outro amigo meu, que não gostava de romances, costumava excetuar tão somente os de Julio Verne, dizendo que neles a gente aprendia. O mesmo digo dos discursos do Dr. Capelli. Não são simples justificações rápidas e locais de um projeto de lei, mas verdadeiras monografias. Que se questione sobre a oportunidade de alguns desenvolvimentos, é admissível, mas ninguém negará que tais desenvolvimentos são completos, e que o assunto fica esgotado. Quanto ao estilo, meio didático, meio imaginoso, está com o assunto. Não perde por imaginoso. Na historia há Macaulay e Michelet, e tudo é história. Nas nossas câmaras legislativas perde-se antes por seco e desordenado. Moços que brilharam nas associações acadêmicas e literárias entendem que, uma vez entrados na deliberação política, devem despir-se da clâmide e da metáfora, e falar chão e natural. Não pode ser; o natural e o chão têm cabida no parlamento, quando são as próprias armas do lutador; mas se este as possui mais belas, com incrustações artísticas e ricas, é insensato deixá-las à porta e receber do porteiro um canivete ordinário.

Amor! assunto eterno e fecundo! Primeiro vagido da terra, último estertor da criação! Quem, falando de amor, não sentir agitar-se-lhe a alma e reverdecer a natureza, pode crer que desconhece a mais profunda sensação da vida e o mais belo espetáculo do universo. Mas, por isso mesmo que o amor é assim, cumpre que não seja de outro modo, não permitir que se corrompa, que se desvirtue, que se acanalhe. Onde e quando não for possível tolher o mal, é necessário acudir-lhe com a lei, e obstar à inundação pela canalização. Creio ser esta a tese do discurso do Sr. Capelli. Não a pode haver mais alta nem mais oportuna.

Direi de passagem que apareceram ontem alguns protestos contra dois ou três períodos do discurso, vinte e quatro horas depois deste publicado, por parte de intendentes que declaram não os ter ouvido. Não conheço a acústica da sala das sessões municipais; não juro que seja má, visto que o texto impresso do discurso está cheio de aplausos, e houve um ponto em que os apartes foram muitos e calorosos. Um dos intendentes que ora protestam atribui as injustiças de tais trechos à revisão do manuscrito. Assim pode ser; em todo caso, as intenções estão salvas.

O que fica do discurso, excluídos esses trechos, e mais um que não cito para não alongar a crônica, é digno de apreço e consideração. Não há monografia do amor, digna de tal nome, que não comece pelo reino vegetal. O Sr. Capelli principia por aí, antes de passar ao animal; chegando a este, explica a divisão dos sexos e o seu destino. Num período vibrante, mostra o nosso físico alcançando a divinização, isto é, vindo da promiscuidade até Epaminondas, que defende Tebas, até Coriolano, que cede aos rogos da mãe, até Sócrates, que bebe a cicuta. Todos os nomes simbólicos do amor espiritual são assim atados no ramalhete dos séculos: Colombo, Gutenberg, Joana d’Arc, Werther, Julieta, Romeu, Dante e Jesus Cristo. Feito isso, como o principal do discurso era a prostituição, o orador entra neste vasto capítulo.

O histórico da prostituição é naturalmente extenso, mas completo. Vem do mundo primitivo, Caldéia, Egito, Pérsia, etc., com larga cópia de nomes e ações, mitos e costumes. Daí passa à Grécia e a Roma. As mulheres públicas da Grécia são estudadas e nomeadas com esmero, os seus usos descritos minuciosamente, as anedotas lembradas — lembradas igualmente as comédias de Aristófanes, e todos quantos, homens ou mulheres, estão ligados a tal assunto. Roma oferece campo vasto, desde a loba até Heliogábalo. Não transcrevo os nomes; teria de contar a própria história romana. Nenhum escapou dos que valiam a pena, porém de imperadores ou poetas, de deusas ou matronas, as instituições com os seus títulos, as depravações com as suas origens e conseqüências. Chegando a Heliogábalo, mostrou o orador que a degeneração humana tocara o zênite. “O momento histórico era solene, disse ele, foi então que apareceu Cristo.”

Cristo trouxe naturalmente à memória a Madalena, e depois dela algumas santas, cuja vida impura se regenerou pelo batismo e pela penitência. A apoteose cristã é brilhante; mas história é historia, e força foi dizer que a prostituição voltou ao mundo. Na descrição dessa recrudescência do mal, nada é poupado nem escondido, seja a hediondez dos vícios, seja a grandeza da consternação. Aqui ocorreu um incidente que perturbou a serenidade do discurso. O orador apelou para um novo Cristo, que viesse fazer a obra do primeiro, e disse que esse Cristo novo era Augusto Comte

Muitos intendentes interromperam com protestos, e estavam no seu direito, uma vez que têm opinião contrária; mas podiam ficar no protesto. Não sucedeu assim. O Sr. Maia de Lacerda bradou: Oh! oh! e retirou-se da sala. O Sr. Capelli insistiu, os protestos continuaram.

O Sr. Barcellos afirmou que o positivismo era doutrina subversiva. Defendeu-se o orador, pedindo que lhe respeitassem a liberdade de pensamento. Travou-se diálogo. Cresceram os não-apoiados. O Sr. Capelli parodiou Voltaire, dizendo que, se Augusto Comte não tivesse existido, era preciso inventá-lo. O Sr. Pinheiro bradou: “ Chega de malucos!”. Enfim, o orador compreendendo que iria fugindo ao assunto, limitou-se a protestar em defesa das suas idéias e continuou.

Esse lastimável incidente ocorreu na terceira coluna do discurso, e ele teve sete e meia. Vê-se que não posso acompanhá-lo, e, aliás, a parte que então começou não foi a menos interessante. O discurso enumera as causas da prostituição. A primeira é a própria constituição da mulher. Segue-se o erotismo, e a este propósito cita o célebre verso de Hugo: Oh! n’insultez jamais une femme qui tombe! Vem depois a educação, e explica que a educação é preferível à instrução… O luxo e a vaidade são as causas imediatas. A escravidão foi uma. Os internatos, a leitura de romances, os costumes, a mancebia, os casamentos contrariados e desproporcionados, a necessidade, a paixão e os D. Juans. De passagem, historiou a prostituição no Rio de Janeiro, desde D. João VI, passando pelos bailes do Rachado, do Pharoux, do Rocambole e outros. Nomeando muitas ruas degradadas pela vida airada, repetia naturalmente muitos nomes de santos, dando lugar a este aparte do Sr. Duarte Teixeira: “Arre! quanto santo!”

Vieram finalmente os remédios, que são quatro: a educação da mulher, a proibição legal da mancebia, o divórcio e a regulamentação da prostituição pública. Toda essa parte é serena. Há imagens tocantes. “No pórtico da humanidade a mulher aparece como a estrela do amor”. Depois, vem o projeto, que contém cinco artigos. Será aprovado? Há de ser. Será cumprido.

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Entrou a estação eleitoral. Começa a florescência das circulares políticas…

Bailarinas atando as sapatilhas
Bailarinas atando as sapatilhas, 1893-1898, de Edgar Degas

Nota: A crônica a seguir foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 15 de outubro de 1893, há exatos 115 anos.

Entrou a estação eleitoral. Começa a florescência das circulares políticas. Há climas em que este gênero de planta é mais decorativo que efetivo; as arengas aí valem mais. Entre nós, sem deixar de ser decorativa, a circular dispensa o discurso.

Realmente, ajuntarem-se trezentas, seiscentas, mil, duas, três, cinco mil pessoas para escutar durante duas horas o que pensa o Sr. X. de algumas questões públicas, não é negócio de fácil desempenho. Creio que vai nisso mais costume ou afetação que necessidade política. Vai também um tanto de astúcia. Os candidatos percebem naturalmente que homens juntos são mais aptos para aceitar uma banalidade do que absolutamente separados. Mais aptos, note-se, não nego que, dentro do próprio quarto, sem mulher, sem filhos, sem criados, sem retratos, sem sombra de gente, um homem tenha a aptidão precisa para aceitar uma idéia sem valor. A aptidão, porém, cresce com o número e a comunhão das pessoas.

A circular é outra coisa. A primeira vantagem da circular é não ser longa. Não pode ser longa; é cada vez mais curta, algumas são curtíssimas. A segunda vantagem é ir buscar o eleitor; não é o eleitor que vai ouvi-la da boca do candidato. Vede bem a diferença. Em vez de convidar-me a deixar a família, o sossego, o passeio, a palestra, a circular deixa-me digerir em paz o jantar e dormir. Na manhã seguinte, ao café, é que ela aparece, ou em forma de carta selada, ou simplesmente impressa nos jornais, o que é mais expedito e mais para se ler. É preciso não conhecer a natureza humana para não ver que há já em mim alguma simpatia para o homem que assim me comunica as suas idéias, no remanso do meu gabinete, pelo telefone de Gutenberg.

Agora mesmo acabo de ler a circular do Sr. Malvino Reis. É um documento interessante e prático. Tenho notado que o espírito acadêmico, o scholar, inclina-se particularmente à teoria, pronto em admitir uma idéia apenas indicada no livro de propaganda. O homem de outra origem e diversa profissão é essencialmente prático; vai ao necessário e ao possível. Não se deixa levar pela beleza de uma doutrina, muita vez inconsciente, muita vez oposta à realidade das coisas. Por exemplo, o Sr. Malvino Reis não apresenta programa político, e dá a razão desta lacuna: “No momento atual em que, infelizmente, nossa pátria se acha envolvida em uma comoção interna, que todos lastimamos e que todo o coração brasileiro acha-se enlutado, não é ocasião própria para a apresentação de programas políticos…”

A tese é discutível. Parece, ao contrário, que os programas políticos são sempre indispensáveis, uma vez que é por estes que o eleitor avalia a candidatura; mas é preciso ler para diante, a fim de apanhar todo o pensamento: “… programas políticos, que geralmente são alterados…” Aqui está o espírito prático. Explica-se a lacuna, porque os programas costumam ser alterados; não alterados ao sabor do capricho ou do interesse, mas segundo a hipótese formulada no final do período: “… alterados, quando assim o exige o bem público.” Não é usual esta franqueza; por isso mesmo é que esse documento político se destacará da grande maioria deles.

Outro ponto em que a circular confirma o meu juízo é o post-scriptum. Diz-se aí que “o 2° distrito é composto das freguesias de S. José, Sacramento, Santo Antônio, Sant’Ana. Espírito-Santo e S. Cristóvão.” Aparentemente é ocioso. Indo ao âmago, vê-se a necessidade, e descobre-se quanto o candidato conhece o eleitor. O eleitor é, em grande parte, distraído, indolente e um pouco ignorante. Pode saber a que freguesia pertence, mas, em geral, não suspeita do seu distrito. Daí o memento final. É prático. Outros cuidariam mais da linguagem; melhor é curar do que interessa ao voto e seus efeitos.

Não me acusem de parcialidade, nem de estar a recomendar um nome. Não conheço nomes, emprego-os porque é um modo de distinguir os homens. Um ponto há em que a circular do Sr. Malvino Reis combina com as do Sr. Ribeiro de Almeida e Dr. Alves da Silva, candidatos pelo 7° distrito de Minas: é a economia dos dinheiros públicos. Nunca leio esta frase que me não lembre de um ministério de 186…, cujo programa, exposto pelo respectivo chefe, consistia em duas coisas: a economia dos dinheiros públicos e a execução das leis. Eis aí um credo universal, um templo único. Eu, se estivesse então na câmara, qualquer que fosse o meu programa político, alterava-o com certeza. Assim o exigia o bem público.

Não pus o ano exato do ministério, por me não lembrar dele, não por esconder a minha idade. Assim também, — entre parêntesis, — se na crônica passada disse conhecer o finado Garnier, há vinte anos, a culpa não foi minha, nem da composição, nem da revisão, mas desta letra do diabo. Trinta anos é que devia ter saído. Mas que querem? Também a letra envelhece. A minha, quando moça, não era bonita, mas fazia-se entender melhor. Há dias dei com um antigo bilhete de José Telha. Que corte de letra, Deus dos exércitos! era um regimento de soldados, mais ou menos bem alinhados, marchando com regularidade, a tempo. Hoje é uma turba de recrutas. Entretanto, José Telha não é velho; mas, se há pessoas que precedem a letra, como o Sr. senador Cristiano Otoni, cuja escrita de octogenário tem a virilidade antiga, letras há que precedem a pessoa; é o caso de José Telha. Em qual das classes estarei eu? retournons à nos moutons.

Estes carneiros eram, se bem me lembro, a execução das leis e a economia dos dinheiros públicos.

Seria injustiça dizer que os dois candidatos do 7º distrito de Minas limitam à economia o seu programa. Há mais que ela. Uma das circulares, posto tenha apenas dez linhas, encerra quatro idéias. Não são novas, mas são idéias. A outra é menos curta, mas pouco mais tem do dobro. Entre os artigos do programa desta, figura a liberdade religiosa, que não parece bastante ao candidato, uma vez que o casamento civil é obrigatório; quer torná-lo facultativo. A circular fala também da necessidade de medidas que fixem o trabalhador nas fazendas. Pela minha parte, não vejo nada tão eficaz como o contrato da antiga câmara municipal com um empresário da numeração de casas, legalizado por uma postura. Muda-se o número de uma casa, põe-se-lhe placa nova, e o morador recebe um aviso impresso desse benefício, no qual se lhe diz que vá pagar o preço à rua (creio que Nova do Ouvidor) sob pena de cadeia.

Quanto às outras partes do programa da circular… Mas aonde vou eu neste andar administrativo e político? Musa da crônica, musa vária e leve, sacode essas grossas botas eleitorais, calça os sapatinhos de cetim, e dança, dança na pontinha dos pés, como as bailarinas de teatro; gira, salta, deixa-te cair de alto, com todas as tuas escumilhas e pernas postiças. Antes postiças que nenhumas.

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